jonathan 10/09/2022
a perspectiva única de uma mulher transformada em vilã
é estranho dizer que comecei a leitura de meu policial em junho e que só estou terminando agora, em setembro, mas, mais do que isso, é curioso afirmar que nem a pior resssaca literária de toda a minha vida somada aos vários dias sem ler conseguiram ofuscar o trabalho brilhante de bethan roberts ao longo das páginas do livro a ponto de me fazer tirar meia estrela sequer ? apesar de eu sentir que ela se esforçou um pouquinho pra que eu tirasse uma conclusão diferente da que eu tive sobre a obra.
a história, contada através de relatos escritos por marion e patrick, as ?bases? do triângulo amoroso vivido com tom ? marido de marion e amante de patrick ?, narra a relação que ambos têm entre si e com tom, desde o momento em que se conhecem até a velhice, pincelando fragmentos do futuro enquanto o passado é revelado. marion sempre teve uma paixão platônica por tom, o irmão de se sylvie, sua melhor amiga. já patrick, o artístico e culto curador de museu de brighton, acaba esbarrando com uma versão diferente de tom, o policial gentil e atraente, em uma situação atípica na rua, e então simplesmente não consegue mais tirá-lo da cabeça.
preciso começar falando um pouco sobre a narrativa simples e cotidiana entregue por bethan. logo nas primeiras páginas fica claro que não é do interesse da autora impactar com grandes acontecimentos que garantam que o leitor não queira mais largar o livro, mas, mesmo preferindo uma leitura mais rápida e dinâmica, eu poderia definir esse como o grande pulo do gato. ao cozinhar os acontecimentos em banho maria, ela consegue fazer com que a história cresça aos poucos dentro de cada um, fazendo com que tudo pareça possível e com que a simpatia por cada personagem e suas questões individuais aumente na mesma proporção. fica claro que ela quer que escolhamos um lado, mesmo que as informações não fiquem claras de imediato, o que torna tudo ainda mais interessante.
ao contrário do que parece ser uma opinião bastante geral, não senti a falta de um ponto de vista específico para tom, bem pelo contrário, diria que o seu silêncio salienta muito bem as características atribuídas a ele nas narrativas de patrick e marion, as pessoas mais importantes de sua vida. a minha principal crítica se deve ao fato de o livro se vender mal e se divide para abranger o mal aproveitamento da narrativa de marion.
se analisarmos de forma prática as narrativas sobre casais homoafetivos, seja na própria literatura ou também no cinema, televisão e afins, não fica difícil identificar um certo padrão bastante recorrente: o desastre. histórias com amores impossíveis sempre enchem os olhos, os bons amantes de romance sempre estão dispostos a se emocionarem e a torcerem até o último segundo, mesmo quando nunca houve a esperança de um ?e viveram felizes para sempre?. porém, em meu policial, me pego pensando se houve um clamor avassalador nesse sentido, o amor e a tragédia de tom e patrick me fizeram roer as unhas e assoar o nariz no meio de uma noite mal dormida? especificamente, eu diria que não.
mas, em comparação, o drama de uma mulher que teve os seus sonhos roubados (literalmente!!!) por um amor jamais correspondido foi o suficiente para me intrigar ao longo das páginas. e quando digo que o livro se vende mal, me refiro exclusivamente ao fato de tentarem trazer o leitor até a história cultivando a ideia de um amor entre dois homens, excluindo quase que de imediato o cogitar de um protagonismo feminino único que poderia ser muito mais aproveitado se todos não chegassem à história enxergando marion como uma espécie de ?empata foda?, que insiste em segurar tom quando tudo o que as pessoas querem é vê-lo nos braços de patrick.
não seria muito mais original se a mulher, ao invés de uma vilã amargurada e ressentida, fosse apenas um ser humano passível de erros em uma situação ruim, mas que também merece a felicidade? imagino que por esse plot twist quase ninguém esperaria.
mas, apesar disso, a mensagem é passada com sucesso. meu policial entrega a sensibilidade dos pontos de vista de dois lados de uma mesma moeda castigada pelos horrores de uma sociedade intolerante de forma brilhante e bastante fluida. apesar do tom morno, que pode não ser do agrado de muitas pessoas, não é difícil se pegar pensando na história do livro em paralelo ao mundo em que vivemos hoje, o que, definitivamente, transforma essas páginas em algo muito mais impactante do que apenas um livro monótono para quem estiver disposto a olhar além.
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agora, aqui vão alguns parágrafos especiais dedicados a defender marion burgess, a verdadeira grande protagonista do livro, de todo o hate direcionado a ela por pessoas emocionadas por mais um casal gay que terminou tragédia (contém spoilers):
acabou que durante as páginas ? em especial nas partes narradas pela própria marion, onde ela expressa seu sofrimento ?, que toda a culpa sobre o que houve desde o início foi jogada nela de forma direta. tudo na narrativa nos leva a pensar sobre como marion não foi uma boa esposa, como marion não foi compreensiva com as saídas do tom, como marion não se esforçou pra entender o que acontecia com o patrick, como marion não interpretou os sinais de julia e por isso foi ignorante, como marion não processou a situação rápido o suficiente, como marion não aceitou as coisas que não poderia mudar, como marion foi ressentida, como marion foi ciumenta, como marion foi vingativa, como marion foi inconsequente, como marion foi histérica, como marion fez algo imperdoável.
okay, mas o que a marion sabia?
alguém a avisou que no primeiro suspiro apaixonado ela estava assinando um contrato de infelicidade? alguém a avisou que estava sendo ridícula e que ela seria usada por se permitir ser ingênua ao pensar que alguém como tom poderia cogitar se casar com ela sem segundas intenções?
no que ela pensou ser o dia mais feliz da vida dela, ela se casou com o homem dos seus sonhos: bonito, atlético, inteligente e mais sensível do que jamais poderia imaginar, que, aparentemente, se afastava do padrão machista com o qual grande parte das mulheres da época estava fadada a terminar ? temos sylvie como o grande exemplo no próprio livro. mas, afinal, tom era assim tão diferente e especial? eu digo que não. sendo um homem gay, ele deixou de ser machista e misógino ao imaginar que teria uma esposa submissa em casa cuidando dos filhos sem questionamentos sobre a sua vida na rua? eu afirmo categoricamente que não. ele foi uma vítima das atrocidades cometidas pela esposa histérica e ressentida? acho que a essa altura você já percebeu que eu penso o exato contrário. ele sofreu as consequências por ter tratado uma mulher como alguém inferior.
por ser de uma minoria social brutalmente recriminada na sociedade inglesa, suponho que o tom tenha aprendido algumas coisas sobre empatia de forma abstrata ao longo da vida, mas ainda assim tratou marion como um objeto do qual ele poderia desfrutar quando fosse conveniente ? para se manter nas sombras, não levantar suspeitas ?, mas que poderia largar de lado quando bem entendesse para ficar com quem ele realmente gostaria de estar, às escondidas. me pergunto o que o diferenciaria de um homem hétero se casando com uma mulher gentil e dedicada buscando sempre ter comida e roupa lavada ao chegar em casa às tantas depois de encher a cara e pegar quantas quisesse na rua.
o grande x da questão é que a marion buscava algo básico na vida: um casamento onde haveria respeito, amor, cumplicidade, dignidade para ambas as partes, mas o que ela recebeu ao invés disso? além de toda a dor e sofrimento de ter se casado com um homem que jamais poderia amá-la como ela esperava, ainda foi obrigada a conviver com o silêncio e esquivas, como se todas as suas suspeitas não passassem de devaneios paranoicos. nem mesmo julia, que dizia se importar tanto, foi capaz de superar a sua paixonite platônica para ter uma conversa sóbria por mais de dois minutos sobre a situação e ajudá-la a encontrar uma saída.
concluo dizendo que, apesar de meu policial se tratar de um livro que traz como trama a história de um casal gay, será que podemos dizer que esta mulher recebeu a dignidade com a qual esperamos que a comunidade lgbtqiapn+ seja tratada? será que uma mulher sozinha, magoada e enganada, tratada como inferior e ignorante, com a qual ninguém nunca quis cogitar ter uma conversa honesta, merece ser odiada e vista como a grande vilã por um erro cometido no pior momento da sua vida, mas do qual se arrependeu amargamente por todos os dias que se seguiram? pelo menos, apesar do que foi, ela pode dizer que fez alguma coisa, enquanto tudo o que tom fez foi ser um covarde com marion desde o início e com patrick, no final, abandonado-o quando as coisas deram errado.
deixo no ar esse exercício de empatia e reforço mais uma vez: marion, você sempre será a protagonista, e tom, ser gay nunca te isentou de ser machista!