Krishnamurti 19/05/2022
DILÚVIO DAS ALMAS (uma das estações do inferno)
O novo livro do escritor e monge beneditino Tito Leite, sob o título de “Dilúvio das almas” é, para além das mensagens intrínsecas, obra que pede algumas considerações sobre a história da literatura quanto às ditas correntes literárias. Expliquemos sucintamente para melhor apreender outros aspectos do romance no tempo e local em que foi escrito. Isto é; em 2022, e no Brasil.
O poeta francês Arthur Rimbaud escreveu pelos idos de 1873, longo poema em prosa poética que foi traduzido no Brasil com o título de “Uma estação no inferno”. É longo relato, de um homem perscrutando as suas profundezas e origens. O verso livre em que tal obra foi concebida buscava desesperadamente perceber a realidade através dos sentidos e transformá-la em poemas cheio de símbolos, sugestões e ressonâncias musicais. Ao lado de Charles Baudelaire, Stéphan Mallarmé e outros poetas brilhantes como Paul Verlaine (que cunhou a expressão ‘poetas malditos’), sedimentou-se também a figura do artista boêmio, decadente e profundamente crítico em relação à sociedade de seu tempo, questionando as práticas sociais e a industrialização do momento. Estávamos em fins do século XIX, e são eles que fundam as bases das futuras vanguardas.
Firme e benéfica reação ao sonho cientificista que imperava, porque os ditos poetas malditos conceberam a vida como mistério e dividem-se entre o desejo de felicidade, beleza e perfeição e a descida ao inferno da existência e da consciência humana. Testemunharam o drama do homem de seu tempo, e se lançaram ao experimentalismo de novas técnicas absolutamente necessárias para expressarem suas sensibilidades e pensamentos. Assim, a arte; mais que um reflexo da realidade exterior, deve ser outra, interior e mais profunda, que enfoque inclusive o lado obscuro e às vezes perverso do humano que o racionalismo ignorou. Mais que retrato, reflexão.
O leitor atual que abre a obra do senhor Tito Leite se depara com a epígrafe retirada justamente daquela obra de Rimbaud “Uma estação no inferno”: E começamos a leitura já desconfiados de umas coisinhas. Eis a epígrafe: “Agora sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor é um sono bem bêbado, na praia”. O autor, que é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte sabe dos aspectos acima ventilados e urde sua obra em um tom de um pessimismo, ou melhor, um quase Niilismo de visão cética radical em relação às interpretações da realidade nacional. O filósofo Nietzsche e seu eterno retorno etc., são citados algumas vezes. Não é para menos, sobretudo na principal chave existencial do protagonista Leonardo, um nordestino que nos idos dos anos 70 resolve emigrar para a terra das ‘oportunidades’ que era a São Paulo daqueles anos. Lembramos inclusive que a literatura brasileira já produziu obras fenomenais sobre o drama humano dos ‘retirantes’ do Nordeste brasileiro como é o caso de Vidas Secas de Graciliano Ramos, o Quinze de Rachel de Queiroz e mesmo o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, que a seus modos e meios, retrataram gente (por gerações e gerações seguidas), que abandona, ou cogita abandonar a terra natal por conta da seca e da miséria em busca de uma localidade que lhe dê melhores condições de vida. “Dilúvio das Almas”, podemos dizer, é obra que marca uma dessas figuras humanas vista sob o prisma do tempo decorrido, do não acerto de nada vezes nada na vida, do fracasso completo. Um verdadeiro inferno sobre a face da terra.
Leonardo o protagonista da trama, é homem com uma concepção de vida limitada. Um verdadeiro néscio, embora possua formação de segundo grau, uns laivos de artista plástico e tenha aprendido com amigos alguns rudimentos de filosofia de boteco no tempo que morou em São Paulo por onde passou por humilhações de toda sorte, que o transformaram em um proscrito social, um brasileiro exilado em seu próprio país.
O homem acaba retornando de São Paulo com escalas em Canudos e Juazeiro do Norte. A promessa de trabalhar como professor em uma escolinha em Canudos não dá certo porque quando lá chega, o sujeito que o convidou, está morto ‘de morte matada’. Finalmente chega a Dilúvio das Almas, sua pequena cidade natal. E esta criatura é por natureza e por circunstâncias que alcançam sempre os ‘deserdados da sorte no Brasil’, um derrotado, desamparado na sua miséria, vítima de um fatalismo atávico, ativado pela sequidão e maldade dos poderosos, levado a extremos pelo mutismo dos personagens que calam para assimilar a prepotência e desonestidade dos mais fortes, o calor, a paisagem e a fatalidade, não de uma terra prometida, mas de uma terra social e geograficamente marcada pelo êxodo.
Segue a levada doida da vida do Leonardo. Conhece e se relaciona com uma tal de Simone, outra infeliz da sorte caluniada de puta pelos habitantes. A tragédia sertaneja não para aí, matam parentes seus. Se mete em bebedeiras e termina arrebentando uma garrafa na cabeça de um bandido. E por andar na vida nesse desnorteio existencial, nessa fraqueza de vontade, nessa anemia de objetivos numa completa porralouquice (não encontro outra expressão), termina carregando o destino de criar mundos semelhantes. Acaba caminhando de braço dado com a barbárie circundante em Dilúvio das almas. O resultado é desastroso e o arruinará para sempre.
TRECHOS:
“Frei Júlio, o novo pároco, cantou uma canção do Padre Zezinho — Senhor, dai pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão —, tentou criar uma Comunidade Eclesial de Base e falou de reforma agrária. Foi chamado de comunista do diabo e perseguido pelo bispo da diocese. Bala ou fogueira. Acabou sendo afastado da ordem. A minoria parasita da prefeitura e os que vivem da exploração dos oprimidos festejaram.”
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“Entro em casa e beijo sua testa. Aquele corpo tão pequeno no caixão. A família perguntando o que fizemos para merecer tanta desgraça. Ontem o enterro do tio, e agora é a vez da minha mãe. Não fizemos nada de errado. Não merecemos isso. Tudo acontece porque existe uma cultura de morte sustentada pelos poderes dos mais fortes. Sustentados e legitimados pelo medo dos mais fracos. Quero cuspir nesses coronéis. Nos políticos e burgueses que atuam feito aves de rapina na economia falida desse lugar. Filhos da puta, todos eles. A tristeza e uma novidade chamada ódio me abraçam e me convidam à barbárie.”
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A abordagem de elementos discursivos como a seca, a miséria, o flagelo, o misticismo, a ignorância, o fatalismo, a submissão, e um banditismo que agora planta maconha, ligados aos retirantes; ou a violência, a omissão e a corrupção do Estado por meio de agentes do Poder Público, também focalizados no romance, terminam por contribuir, para a constituição e permanência de uma identidade regional estigmatizada na medida em que tais elementos discursivos sintetizam anormalidade e inferioridade de seres humanos contingenciados pela natureza ou pela sociedade, que lhes tiraria qualquer possibilidade de reação orientada à mudança. Seja como for, isto não invalida o mérito que tem de fazer ecoar no leitor o grito da urgência de uma atitude coletiva que efetivamente transforme um país que está socialmente e literalmente implodindo em meio a tanto despautério. Nesse ponto voltamos a lembrar da expressão dos ‘poetas malditos’ do início da resenha... Aqui e agora há também um clima insuportável que busca a sua voz.
No Brasil temos na realidade, e não somente na ficção, a eterna reprodução de imagens, às quais, à semelhança de símbolos, também impelem a ações políticas e simbólicas muito mais de permanência que de mudanças. Mudamos os cenários e atores, a peça continua a mesma. E quem há de negar, os interesses poderosos e vitais que entram nesse embate, expressando a força mobilizadora de tudo o que toca a identidade? Interesses escusos que, ora dissimulando estigmas, ora simulando homogeneidade de interesses, ainda capturam imagens da Região Nordeste, as quais, continuam sendo evocadas pelo senso comum e por segmentos hegemônicos do país, ora como estigma, ora como emblema. “Dilúvio das Almas” inicia e termina sem destino ou esperança. Uma história inglória e cruel. Obra de triste contexto e sonhos frustrados justamente como está o Brasil de nossos dias.
Maio de 2022.
Livro: “Dilúvio das almas”, Romance de Tito Leite – Editora Todavia – São Paulo – SP – 2022, 112 p. - ISBN 978-65-5692-255-3 - Link para compra e pronto envio:
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