fabio.ribas.7 22/12/2022
Gaza, terra da poesia
?- E por que escrevem poemas ao invés de só atirarem pedras??
Há tempo mesmo para tudo debaixo do sol. O jovem Davi também sabia disso. Ele sabia que há guerras que são feitas com espadas, escudos e armaduras, embora, às vezes, estas não nos caibam no corpo. Às vezes, não são apenas armadura de outros, mas as guerras também? Há guerras que nos exigem outras armas, outras fardas, uma outra linguagem. Davi foi um menino que, na sua pequenice, usou pedras para ganhar a guerra contra Golias e os filisteus. Porém, ele também compôs poemas, porque nem sempre é tempo de se jogar pedras.
O poema é também pedra, e se a pedra ? ou míssil ou bomba ? pode destruir os corpos de nossos inimigos, já não possuem a mesma eficácia para nos trazer amigos que compreendam tudo isso que se passa. A pedra do poema possui este peso: o de nos atingir de uma outra forma, ainda mais profunda, sem nos destruir o corpo. Todavia, sem nos destruir o corpo, a pedra pode ferir nosso coração e alma e fazer com que nossos olhos ? cansados de tantos anos de cerco, sangue e lágrimas ? possam ver o que nunca fora antes visto, ainda que olhemos há tempos este antagonismo sem fim.
A função do poema é ser pedra e pedra nas mãos de 17 jovens escritores. São vozes que cantam em ?Gaza, terra da poesia?, fazendo o dueto com o zunido de suas pedras lançadas no ar, lançadas pela funda da escrita até que atinjam o coração do leitor. A mensagem carregada pela escrita, a imagem acústica que a arte instiga na nossa mente, o verso-pedra, o poema capaz de ressuscitar os golias e trazê-los às trincheiras, mas, agora, do mesmo lado do povo de Davi... Isso é possível? Ou seria esperar demais da arte? O que eu acredito mesmo é que se a arte não pode reconciliar, ao menos, poderá trazer novos amigos para entenderem a discórdia, suas razões e derrazões. Portanto, sem esperar da poesia mais do que ela pode dar, ela é a esperança de reapresentar o mundo, o mesmo mundo de sempre, aos olhos que possam estar por demais cansados, enfastiados, de tanta exposição às mesmas narrativas eternas, tanto de um lado, como de outro.
Assim, este livro e seus jovens poetas cumprem o que lhes cabe: cantar essa qassida em coro, cântico coletivo a dezessete vozes (ou mais). Dando a um dos lados a oportunidade de que os ouçamos, como nunca (ou quase) costumamos fazer. Mas é este livro, então, sobre a guerra e o conflito? Sim e não. Há a guerra e o conflito vividos, mas que não se entende, de uma terra, uma faixa espremida, bem ali no centro do planeta terra. Por outro lado, há outras guerras e conflitos narrados, que se estendem também naquela faixa, mas é no espaço e tempo apertados do coração daqueles jovens poetas.
Ao ler o livro, como me saltou aos olhos o número de indagações espalhadas por todos os autores. Por que fazemos tantas perguntas? E, mais uma vez, o lúdico da nossa meninice parece querer compreender e dominar o caos que nos cerca por meio das perguntas, inúmeras. Parecem ser infinitos os desentendimentos hostis que cercam todos eles, aqueles jovens autores, desde a infância. O homem foi criado para dar sentido ao mundo que o cerca. Um mundo e um universo que apontam na direção de um Criador, mas, em meio a tanto caos, qual o sentido? E os pontos de exclamação transbordam de Gaza! Os poemas de ?Gaza? mostram que somos seres em guerra, em guerra conosco e com o outro, mas também contra um deus que nos é desconhecido, tanto o deus de um lado como o do outro.
Qual não foi o conflito que minha esposa teve ao ouvir que ?mulheres mentirosas tomam café celebrando o rubor nos rostos e as mudanças do corpo?. E, da mesma autora, Amal Abuqmar, como ficar impassível diante da pedra densa de ?Leite amargo?, que nos diz mais do que está em seus versos dito. E a poetisa cumpre com seu papel que é o de nos trazer para dentro do coração dela perguntando: ?Você entende o que significa crescer em seu corpo o legado da derrota, do medo e da fraqueza e a amargura do leite materno??. Estamos diante de testemunhas que nos cantam uma verdade implacável, a de que ?tudo aqui morre, tudo menos os mortos?.
E as inúmeras perguntas vão se multiplicando a cada autor, a cada poema, como que exigindo do leitor não apenas compreensão e posicionamento à causa Palestina, mas também uma resposta que pudesse ser possível. Mas há resposta possível a estes questionamentos de Muna Almassdar: ?Quem apaga a guerra dentro de mim e me empresta um pouco de esquecimento?/?É possível comprar uma língua e um coração tranquilo??.
Há também entreveros de outra natureza. Os versos com algum erotismo profano de Adham Alaqqad; a metáfora elegante de Marwa Atiya presente em todos os seus três poemas publicados no livro; a pedrada certeira de Fatima Ahmad, quando nos abre uma ferida ao dizer que ?aqui as ideias nascem livres em torno das flores de romã e nas celas a ideia é enterrada viva? ou quando ela aperta ainda mais e com mais força, impiedosamente, a sua pedra que está cravada em nosso peito com sua pergunta: ?Que valor tem a palavra? se tudo aqui está debaixo do sapato do algoz??. Hiba Sabri é outra poeta que encanta com a inteligência de seus versos em sua briga com a poesia e com o amor efêmeros. Entretanto, o que dizer da mais apaixonada poeta do livro, Yussra Assahar? Eu queria mais dela. Um livro todo só para ela é o que eu pediria! Encantado com sua linguagem!
Poesia é algo próprio e pessoal. Compartilhei um pouco das pedras o que ficaram aqui no alvo do meu coração. Parabéns, mais uma vez, à Editora Tabla e ao impressionante trabalho de divulgação da arte e literatura árabes no Brasil.