João 06/09/2020
Numa e a Ninfa - Lima Barreto.
Tal como observou Goethe em suas conversações com Eckerman, parece ser experiência comum que na juventude cada pessoa leve consigo a vaga impressão de que o mundo começou a partir do instante em que ela nascera, sendo o passado uma névoa incolor carente de qualquer importância em face da modernidade na qual o nosso "eu" se insere.
Essa sensação irrefletida e algo individualista impede que a humanidade seja visualizada como uma unidade temporal tendente ao aperfeiçoamento espiritual (ou civilizacional, vá lá). Há uma inclinação mais ou menos explícita em cada um de nós no sentido de olharmos com desdém para as épocas passadas, como se vivendo na ingenuidade dos antigos nossos antepassados não pudessem oferecer soluções para os "sofisticados" problemas de nossa arrojada modernidade.
E é nesse ponto que entra a literatura como mecanismo de memória capaz de comunicar dois mundos separados pelo tempo. A literatura frequentemente nos mostra que ainda compartilhamos os mesmo problemas éticos e culturais experimentados por gerações que nos precederam há um século, ou mesmo há um milênio. E mais, que nossas angústias ainda são substancialmente as mesmas; que os problemas culturais que impedem o alcance do bem-estar geral de nosso povo já eram sentidos há um século, sem que nada tenha sido melhorado quanto a isso. De modo que o único “progresso” que verdadeiramente pode ser proclamado aos quatro ventos é o tecnológico.
A ingenuidade do sujeito contemporâneo logo cai por terra quando a literatura o faz tomar consciência de que os problemas e desafios candentes na contemporaneidade são os mesmos enfrentados há um século; que muitas vezes não há novidades, que as grandes questões morais e culturais de um povo já provocavam o pensamento dos antepassados; e que, de fato, o mundo é muito mais velho do que supõe a visão juvenil do sujeito contemporâneo.
Trazendo essa reflexão para a curta dimensão temporal da República brasileira, é possível verificar que nos últimos dois séculos não houve substancial aperfeiçoamento na cultura político-administrativa do Brasil. É isso que atesta o testemunho dado pelas obras de Lima Barreto. Em “Numa e a Ninfa” o leitor contemporâneo experimenta a triste impressão de que ainda estamos inseridos na viciosa atmosfera política que grassou a primeira República de Lima Barreto.
Embora escrito há mais de um século, o romance faz ver que a “República” e a “democracia” brasileiras passam ao largo das premissas nas quais se fundamentam. Os valores da liberdade, do voto secreto e independente, da transparência político-administrativa e da honestidade intelectual que devem pautar o debate público são escamoteados pelos interesses das classes e corporações dominantes.
Uma das idiossincrasias brasileiras presente no romance é a presença marcante da classe militar na vida política do país. Com isso fica evidenciando que desde a primeira República os militares sempre se arvoraram na condição de “salvadores da pátria” ou de agentes “infalíveis” na correção moral da vida público-administrativa do país. Em nome da “República”, da “Democracia” e da “Moral” a classe militar é frequentemente tida como um trunfo das classes dominantes vocacionado a socorrer o país da oposição de grupos políticos indesejados. Em “Numa e a Ninfa”, Lima Barreto retrata especificamente a vida política do período de governo do Marechal Hermes da Fonseca, cuja atuação teria ganhado eco através do personagem “Bentes”.
Hoje, como foi há um século, não é raro o eleitorado funcionar como massa de manobra pela classe política e pela imprensa nacional. Aliás, o papel da imprensa na condição de “quarto poder” fica patente na crítica de Lima Barreto. E aqui o problema da impressa não se resume à propalada falta de imparcialidade no trato da notícia pública, mas na desonestidade intelectual com que muitos jornalistas e críticos tratam das grandes questões político-sociais trazidas à baila. A importante função de comunicar e de sediar o debate que se espera da imprensa também é maculada pela influência do poder econômico e político exercido pelas classes e corporações dominantes que não raramente “encomendam” a divulgação das matérias jornalísticas, conforme retratado na obra do escritor carioca.
Em “Numa e a Ninfa” Lima Barreto denuncia o “político profissional”. O nobre múnus público que deveria competir apenas aos sujeitos desinteressados e vocacionados a promover o bem-estar geral é sistematicamente ocupado por deputados, senadores e governadores “profissionais” que não visam senão o próprio umbigo.
Desse “fazer política” decorrem todas as deturpações do aparato político-administrativo ainda sentidas nos dias atuais. Assim é que a polícia estatal comumente é dirigida como instrumento de perseguição política. Naturalmente daí deriva também a promiscuidade entre o espaço público e o privado (entre o “jardim” e a “praça pública”), com a utilização do serviço e do patrimônio público em favor dos interesses pessoais.
Para além desse panorama político-administrativo, Lima Barreto ainda traduz o espírito cultural subjacente ao “fazer política” no Brasil. É assim que mais uma vez evoca em sua obra a questão do “bacharelismo” e do “pedantismo universitário” que denunciam a falsa erudição e a falta de talento das classes “intelectualizadas” do Brasil. Essa “República de bacharéis” onde o título de doutor é capaz de atribuir o que substancialmente não existe na administração pública brasileira: inteligência e honestidade intelectual.
Também está presente na sátira de Lima Barreto o sentimento de “vira-lata” supostamente experimentado pelo brasileiro. Derivando daí a supervalorização do sujeito europeu ou norte-americano, bem como de sua cultura, em detrimento das riquezas naturais e culturais do Brasil.
Rigorosamente, não há nada de novo em tudo isso. Certamente todos nós em algum momento da vida tomamos conhecimento desse estado de coisas. O que espanta é saber que os vícios então denunciados pelo escritor não são próprios dessa ou daquela geração, desse ou daquele governo, mas que estão presentes desde o início da República brasileira, sendo ainda praticados sem maiores cerimônias na vida pública que nos cerca.
E essa percepção pode ser obtida com vivacidade graças ao poder da literatura, que, ao entrelaçar realidade e ficção no fio da criatividade narrativa, faculta ao leitor a possibilidade de situar-se no curso da história, reconhecendo-se como integrante de um projeto geracional que necessariamente não começou com ele e nem terminará em sua época.
Por fim, vale ter presente que a sátira de Lima Barreto leva o título de “Numa e a Ninfa” devido ao tom debochado com que o autor narra a história de Numa, um deputado federal sem brilho e destituído de inteligência que depende inteiramente da ajuda da esposa para redigir seus discursos e assim granjear destaque na vida política do país. Isto é, a fama de Numa no meio político se deve fundamentalmente à inteligência de sua mulher que lhe redige os discursos. E assim a história desse personagem é inspirada na lenda de Numa Pompílio. Numa Pompílio foi o segundo rei de Roma e somente teria levado a efeito as reformas político-religiosas de seu tempo graças à sabedoria da ninfa Egéria que sobre ele exercia influência determinante.
“Numa e Ninfa” foi publicado em folhetim nos idos de 1915.