Paulo 26/08/2023
Espécie de romance de investigação, o ponto inicial e principal é o assassinato do deputado João Carlos Satti em Porto Alegre nos anos oitenta, baseado num caso real ocorrido na mesma década, com apenas alguns poucos anos de diferença. Mas o foco da narrativa não é inteiramente o caso ou a investigação.
Cecília, a protagonista, constrói vagarosamente a trama a partir desse núcleo familiar de classe média alta que entra numa turbulência interminável e irreparável por conta da suspeita desse assassinato que acusa o pai da família. A falta de pressa, de ênfase e de foco de Cecília em investigar, nos apresentar ou descobrir o caso não é só para manter esse mistério instigante ou para ir construindo a investigação com o leitor, até porque a narradora já sabe, mas é porque é, sobretudo, um romance narrativo que quer contar histórias, mais do que apenas um subgênero policial. Sem nenhuma pressa Carol Bensimon vai e volta no tempo em vários períodos de várias vidas, é uma ficção que parece muito autobiografia, não do gênero autoficcional, uma mistura de, como diz a sinopse na contracapa, coming of age com romance policial, mas também com boa dose de romance de estrada (gênero de outro título anterior da autora, Todos Nós Adorávamos Cowboys, um road novel total, mais devagar).
Bensimon aprofunda muito bem os personagens, tanto que, assim como vai sempre construindo novas informações e revelações para o caso Satti, nos deixando até em dúvida mesmo quando o fato está evidente, também sempre traz revelações dos personagens, não necessariamente comprometedoras, mas psicológicas, de personalidade, do seu âmago, e ela faz isso de forma mais intensa, quase que com um carinho especial, com um personagem específico muito próximo de Cecília, a narradora conta, nessa vagarosa linha do tempo que vai e volta bem construída, as autodescobertas desse personagem que vai conhecendo a si mesmo, é um ponto do livro tão interessante quanto a investigação do crime.
A escrita de Bensimon tem uma qualidade criativa que não é profundamente lírica, aqui há ocasionalmente o humor um pouco ácido que me lembro de "Todos Nós Adorávamos Cowboys" (onde ela tira sarro dos conspiracionistas do ET Bilu e Projeto Portal), apenas alguns diálogos de Diorama me pareceram pouco criativos, banais, superficiais, num deles, na resolução fácil de um problema, Cecília também me pareceu muito egoísta e isso não foi enxergado/problematizado assim pela narração, que, como uma literatura decente e madura, mostra os defeitos e "falhas de caráter" de qualquer personagem, incluindo o protagonista. Além disso, sendo eu talvez desnecessariamente detalhista, tive a impressão bastante forte de que, de repente, já tarde na segunda metade do livro uma parte breve da escrita me pareceu apenas um texto literário parcamente descritivo de uma narração pobre, "isso foi assim, aconteceu isso, virou e disse".
O final, bem no final, as positivas escolhas de eventos e resoluções soaram quase forçadas, quase, embora seja uma escolha do autor e essas escolhas façam parte do seu âmago, essas resoluções aqui, e realmente não são muitas nem em tom exagerado, pareceram fácil demais (e, claro, comerciais) considerando todo o tom do livro e o psicológico dos personagens e os redemoinhos repetitivos em que eles viveram toda a vida, mas, bem no fim mesmo, não acaba fácil, resoluto, óbvio nem tão reparador, é mais ou menos como se o fim se equilibrasse desse escorregão quase tosco que ele deu brevemente por querer dar um pouco de reparação aos personagens. Esse incômodo pode ser também porque, como dizemos entre os colegas na livraria onde trabalho, a gente só lê/gosta de coisa pesada, "não sei o que indicar quando pedem algo leve".
Por fim, algo curioso é que Carol Bensimon, uma mulher lésbica, ou pelo menos não heterossexual, não prioriza criar personagens LGBTQIA+ nem tê-los como foco da narrativa, curioso porque é natural que queiramos escrever "sobre isso", mas isso não quer dizer que ela não aborda o "assunto" de forma bastante pungente, pelo contrário, entre outras coisas, ela tenta ilustrar como era um pouco dessas vidas na década de 80, que além do abismo de informações e conquistas entre lá e hoje, foi a década da AIDS, que além do próprio mal que causou, piorou os preconceitos e desinformações contra as sexualidades.