Tuca 05/10/2023Meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mateus 11:30)Dois primos. Uma herança. Inveja e perseguição, orgulho e perdão. Essa é uma jornada do destino conectado de dois homens e do que cada um plantou e colheu em suas vidas.
“- Quero que todos leiam, cada pedaço – disse Mr. Edmonstone – , para que possam ver como é de fato o grande herói que vocês criaram!” (pg. 330)
Sir Guy Morville era o herdeiro de uma grande propriedade chamada Redclyffe. Seu primo, a quem todos admiravam, o capitão Phillip Morville, era um exemplo para toda a família, e até mesmo para Guy, e era também o herdeiro do herdeiro. Muitos anos, achando que o pequeno Guy, raquítico e de saúde precária, não vingaria, Phillip cresceu acreditando que Redclyffe seria sua, mas a prosperidade de Guy tirou de Phillip tudo com o qual ele sonhara. E pior, tudo o que ele achava que deveria ser seu passou a pertencer a alguém que o capitão não considerava digno. Quando os dois primos são obrigados a conviver e o brilho de Guy começa a ofuscar Phillip é que a batalha entre poderosos sentimentos e perigosas ações se inicia.
Uma coisa que eu acho sensacional é como Charlotte constrói e desconstrói gradativamente a personalidade desses dois antagonistas na história. Quando eu comecei o livro eu já sabia que Phillip seria considerado vilão, enquanto Sir Guy seria o mocinho pela sinopse. Mas no início eu me perguntava o que fazia de um o vilão e do outro o herói? Pois ambos tinham características e sentimentos muito humanos. Em Guy era possível ver um adolescente comum, vulnerável e órfão, cheio de dúvidas em relação a tudo, principalmente tendo sido criado muito isolado em sua propriedade, e com muita disposição para cada vez mais se tornar uma pessoa melhor mesmo com seus problemas de temperamento e sua falta de etiqueta. E em Phillip tínhamos um jovem orgulhoso e pedante, e o qual a maioria dos seus problemas estavam relacionados a sua pobreza. Não uma pobreza no sentido de miserabilidade, mas uma que o impossibilitava de se casar e de sustentar a mulher que ele amava, de estudar o que sonhava, e que o obrigara a ingressar em uma carreira que ele não queria.
Phillip era bastante inteligente, e ele gostava de exercer sua inteligência manipulando aqueles ao seu redor. Perceber que o que ele pensava exercia influência nos primos, nos tios e nos amigos era para ele não só um combustível para sua soberba, mas o único exercício de poder que lhe era permitido. Mas ele podia ter usado esse poder para o bem, e optou para usá-lo como uma arma para uma inveja que ele não conseguia nem perceber que o habitava, principalmente porque seu orgulho fora bastante alimentado. Assim, a construção do vilão e a construção do herói é feita com parcimônia, tal qual a inveja e a ambição, que crescem quando são alimentadas. Mas a bondade, o perdão e o desejo de fazer o certo também precisam do seu próprio combustível. É como a antiga fábula dos Cherokee acerca dos dois lobos. Dentro de cada ser humano existe um lobo do bem e um do mal, e o que vence é sempre aquele que escolhemos alimentar.
É muito interessante ver como Phillip e Guy agem de formas diametralmente opostas quando colocados em situações idênticas. E quando chegamos ao ponto da virada, que é a dispersão de uma fake News é que ocorre o firmamento do caráter dos dois personagens e que realmente conseguimos enxergar o vilão e o herói, porém ambos ainda bastante humanos e com desenvolvimentos coerentes. É quando conseguimos ver com muita clareza os lobos que eles escolheram alimentar. Sir Guy traz em si uma força e uma fé que o faz florescer na adversidade. Ele pega sua dor e transforma em gentileza. Ele alimenta o lobo do bem e isso o traz paz e uma inteligência que Phillip não era capaz ainda de compreender.
Amy é uma personagem que merece ser destacada, assim como seu irmão Charles. Ambos passam por um lindo processo de evolução quando são tocados pela personalidade e pelo amadurecimento de Guy. À medida que ele cresce, ele consegue aflorar o melhor das pessoas, e consegue também alimentar o lobo bom de cada uma delas. Acho que Amy e Charles são a maior herança de Guy. O enredo de “O herdeiro de Redclyffe” é uma grande imitação da vida: repleto de dor e de amor, de culpa, de arrependimento, e de perdão, de tristezas e de alegrias. É lindo, emocional e trágico. Eu gostaria que a autora tivesse conseguido passar a mesma mensagem com um outro desfecho, mas não sei se isso seria possível. Só sei que “O herdeiro de Redclyffe” é um romance memorável.
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