Ismael.Chaves 16/10/2023
Das telas para o livro: a novelização da obra máxima do Expressionismo Alemão
"Drácula", escrito por Bram Stoker em 1897, é o clássico absoluto das histórias de vampiros e integra a trindade da literatura gótica ao lado de "Frankenstein" (1818) de Mary Shelley e "O Médico e o Monstro" (1886) de Robert Louis Stevenson. Já passados 126 anos desde o seu lançamento, o Príncipe das Trevas continua imortal, através de centenas de edições e adaptações audiovisuais de sua obra. Mas talvez nenhuma, até hoje, seja tão impactante e enigmática quanto o clássico alemão "Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror", de 1922.
Dirigido por F.W Murnau, o filme tem roteiro de Henrik Galeen e toda a concepção artística e visual (desde os cenários até a aparência da criatura) foi concebida por Albin Grau, um aficionado pelo ocultismo que inseriu elementos e símbolos enigmáticos ao longo do filme (e que até hoje permanecem um mistério indecifrável). A sinistra e melancólica trilha sonora de Hans Erdmann foi composta especialmente para o filme – algo inédito para a época. Ainda que baseado em Drácula, a produção não tinha conseguido os direitos de adaptação e por isso alterou os nomes de todos os personagens e também alguns elementos da história. Estrelado pelo igualmente misterioso Max Schreck, Nosferatu foi um grande sucesso. Mas isso não impediu que a produtora Prana Film fosse processada pela viúva de Bram Stoker, que exigiu a destruição imediata de todas as cópias. Mas Nosferatu se provou tão imortal quanto o conde vampiro e não só sobreviveu, como tornou-se um clássico do Expressionismo Alemão.
O que poucos sabem é que, em 1925, foi publicada uma novelização do filme na França. Originalmente publicado em duas edições no periódico francês Le Film Complet, a obra ganhou uma tradução para o português em 2023 em uma edição de luxo pela Editora Sebo Clepsidra, com tradução de Bruno Anselmi Matangrano, que também assina um longo prefácio sobre a tradição dessas revistas e a história por trás desse adaptação, cujo autor Hughes Chelton é outro mistério, já que até hoje ninguém sabe de fato quem ele era.
A novelização, fartamente ilustrada com frames e artes do filme, narra o enredo do filme, mas traz um grande diferencial ao se aprofundar muito mais nos personagens, dando a eles mais desenvolvimento e dramaticidade através de longos diálogos e pensamentos – algo impossível no cinema mudo.
Hutter (Jonathan Harker, no romance original), o protagonista, por exemplo, é um personagem muito mais trágico na novelização. O livro já começa contando que ele morreu, poucos anos depois dos eventos do filme, numa casa de loucos. E, de fato, a novelização nos mostra um personagem que vai enlouquecendo aos poucos nos capítulos finais do livro, a ponto até de enxergar a silhueta do Conde Orlock (Drácula, no original) nas sombras e não sabermos se é real ou alucinação dele. Gostei muito dessa novidade, pois dá um ar ainda mais melancólico e pessimista à narrativa.
A versão francesa da Hellen (Mina Harker) é muito mais desenvolvida. Sua sensibilidade com o sobrenatura e o interesse por temas macabros é muito mais explícito. Há uma grande coragem sob sua melancolia e, principalmente, em sua resolução final na história.
Se o filme de 1922 tem a trilha sonora de Hans Erdmann, que é própria “sinfonia do horror”, para criar uma atmosfera melancólica e opressiva, a novelização não conta com esses recursos audiovisuais. Mas é aí que reside a grande força do livro, que tem na própria escrita e na habilidade do autor essa atmosfera sufocante e perturbadora. Hughes Chelton sabia criar boas cenas de tensão e sua versão da obra é extremamente brilhante ao conseguir captar a atmosfera do filme em palavras. O livro possui uma primeira parte que foca mais no desenvolvimento dos personagens e na atmosfera exótica dos cenários, inserindo a “presença” maligna do Conde em cada frase e ambiente, de modo a colocar o leitor na pele do protagonista, que registra tudo em seu diário. Quando o livro chega em sua segunda metade, nós e os personagens já estamos absorvidos por essa névoa sombria. O que Chelton faz a seguir a abrir a cortina e revelar todo o horror ao qual não podemos mais escapar. O que começa como um estranhamento se torna cada vez mais desesperador e arrepiante.
Algo que contribui para essa atmosfera é o resgate que o autor faz do registro documental de "Drácula". Assim como no romance original – e ao contrário da maioria dos filmes -, a história é narrada através de diários, cartas, recortes de jornal e registros oficiais da prefeitura. Chelton também cria novos personagens que possuem e passam adiante o conhecimento desses documentos – o que, na literatura, seria o mais próximo de um filme found-footage.
Outras novidades bem interessantes são: quando o Professor Bulwer (a versão mais próxima de Van Helsing no filme) conta a Hutter que existem várias definições de um vampiro e resgata justamente as lendas e folclores daquele ser mais bestial, como os ghouls, do qual Orlock se assemelha. Assim como no filme e no romance original, Orlock em nada se assemelha com aquele Drácula galã e sedutor. Ele é um animal muito antigo que apenas deseja saciar sua sede de sangue – e espalhar o horror por onde passa.
Outro ponto muito interessante é que, ao invés de cravar suas presas nas vítimas, Orlock rasga as gargantas com suas unhas compridas e só depois bebe o sangue. Algo que me lembrou outro clássico do cinema vampírico: "Fome de Viver" (The Hunger) de Tony Scott, estrelado por David Bowie, Catherine Deneuve e Susan Sarandon - cujo romance original também será publicado pelo Sebo Clepsidra.
A novelização acerta ao ser fiel e, ao mesmo, inovadora, o que permite uma experiência tão impactante e única quanto o filme.
Para além da história, a edição da Clepsidra ainda traz muitos conteúdos extras que enriquecem ainda mais a leitura. Carlos Primati, um dos maiores pesquisadores e críticos do cinema fantástico, apresenta um posfácio sobre a produção e bastidores do filme, além de ilustrar como esse clássico ganhou vida própria e influenciou diversas outras produções da cultura pop. Felipe Vale apresenta um rico ensaio sobre a história das trilhas sonoras do cinema mudo e conta como foi a composição da partitura criada exclusivamente para "Nosferatu" por Hans Erdmann. Há ainda um relato de Albin Grau de como ele teria tomado conhecimento de um caso verídico de vampirismo e como isso influenciou seu filme, e um breve ensaio do roteirista Henrik Galeen sobre o cinema fantástico. Para encerrar, uma belíssima galeria de artes originais e pôsteres de "Nosferatu" ilustrados por Albin Grau.
Uma belíssima edição que, com certeza, não pode faltar na biblioteca maldita de nenhum vampiromaníaco.