Memórias da febre

Memórias da febre José Eduardo Degrazia




Resenhas - Memórias da febre


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Krishnamurti 13/06/2023

Maturidade e sabedoria lírica
Uma “expressão definitiva de maturidade e sabedoria lírica”. Assim o professor de Literatura Brasileira Sergius Gonzaga, em texto publicado em orelhas, define a obra “Memórias da febre” – Poesias, da autoria do médico e escritor José Eduardo Degrazia. E é um fato inconteste. Degrazia faz parte de um time relativamente pequeno de autores que trilham um percurso literário, sempre buscando o aprofundamento das instâncias reflexivas.

Tal afirmativa não é propriamente uma novidade para aqueles que já o leram. Em 2016, portanto há sete anos, quando da publicação de outra obra sua (Lições de geometria fantástica), que li e resenhei para a Editora Penalux, observei que estávamos diante de um “grande artífice da palavra a fabricar uma poética que não exclui a reflexão e a inteligência.” Adiante voltaremos a esse aspecto, registramos antes, porém, que o autor, tem no currículo nada menos que 19 livros editados em vários gêneros (contos, poesia, novela e infanto-juvenil). É tradutor de 14 outros, dentre eles 9 de Pablo Neruda, e complementa seu currículo com vários prêmios literários no Brasil e no exterior.

A poesia que habita o universo interior do autor onde estão armazenados e transfigurados os produtos da percepção sensível e emotiva da realidade ambiente, aflora para o leitor, de maneira muito simples, porque aos poucos o poeta se inclina para fora de si, alargando o “eu” até o limite do nós. E em sua subjetividade se reflete o humano. Não é daqueles autores que se conformam na autocontemplação narcisista e solitária, em uma lírica localizada na área da sentimentalidade superficial. E ele tem plena consciência disto. Observe-se este verso do poema “Sem título” que abre essa coletânea. “Hoje o dia não está para grandiloquências”. O poeta avisa ao cabo do pequeno poema o que lhe interessa: “Ficar escutando os ruídos distantes do mundo, / a vida passando, passando seus lençóis de bruma.”

Voltemos à “poética que não exclui reflexão e inteligência” no autor. Observamos que é especialista em manejar com muita propriedade a inteligência que fixa a emoção e desvenda nela aquilo que a torna um meio de conhecimento. Repetimos a guisa de maior esclarecimento ainda: sentimento e conhecimento, onde intervêm concomitantemente a emoção, como categoria poética fundamental, e a inteligência, como faculdade necessária ao processo de conhecimento. Há perfeita aderência entre o subjetivo e o objetivo que imbricam-se, formando uma só entidade como acontece no poema a seguir:

DAS FEBRES INTERMITENTES – p.43.
O passado parece o fundo do mar
visto através da máscara do mergulhador submarino.
Aonde estarão as madrugadas e os companheiros
de noitadas de sonho e cerveja
nos bares e calçadas vendo a vida e seus mistérios,
vendo as mulheres com seus vestidos,
os risos enigmáticos cristalizando-se na noite?
O tempo vai ficando cada vez mais distante,
incrustado no cerne da madeira,
seiva da árvore da vida para ser esgotada aos poucos.
Mergulho as mãos no mar profundo,
e trago à superfície as algas da memória,
o mundo e o tempo uma coisa só.
Quantas mulheres levaram o meu olhar
naqueles tempos de juventude,
quando queimavas como uma estrela?
Queima em mim a resina da madrugada,
e a poesia recupera, neste mês de abril,
os tremores das febres intermitentes.

O poeta contempla ideias particulares, subjetivas e entretanto, em certo sentido, universais e verdadeiras, Uma universalidade e verdades do subjetivo. Aí no reino infinito do espírito humano que o autor resgata as “memórias das febres” que permeiam nossa existência. O grande mistério da harmonia universal, através de um jogo contínuo de contrastes (observe-se em vários dos poemas a presença do claro e do escuro, o dia e a noite, o perecível e o eterno, o relativo e o absoluto). É que interessa a descoberta de planos insondáveis, imprevistos do mundo ‘lá fora’, o mundo objetivo, concreto, formado dos demais homens, o amor e suas dolorosas ilusões, a natureza, o cosmo. Importa mais que extravasamentos líricos.

A DOCE ILUSÃO DE SER AMADO – p. 77
Novamente o silêncio se fez sobre a noite insone
e a ausência do teu corpo amado deitou ao meu lado,
fazendo bater o meu coração no ritmo da solidão.
Pálpebras pesadas de sonho e nostalgia, pupilas abertas
ao mistério da poesia que se mostra entre cortinas
e lençóis da cama e ainda guardam o teu perfume.
Subitamente tamborila na vidraça a chuva de verão
há muito esperada, e o sono de me saber amante
aos poucos me embala na doce ilusão de ser amado.

INTENSIDADE – p.80
Um momento de ternura / às vezes basta, / para dar razão / a uma existência.
O teu olhar no meu / em meio ao burburinho da cidade, / o carinho da avó, no leito do hospital, / acariciando a minha mão, / a alegria do filho na força adolescente / gritando sim à vida, / o poema lido no silêncio da sala / enquanto o dia se ilumina, / a flor vermelha que me oferece / sua visão única e intransferível.
À intensidade do tempo, ser.

Já no poema adiante podemos divisar uma grande tela onde se projetam os “eus” da humanidade. As agruras poéticas, deixam de ser aquelas do eu (egocêntrico) para ser as que nascem das universais inquietudes humanas. Ser e não-ser, a condição humana e sua angustiante fugacidade, a morte, os fins últimos do homem:

CONSELHO – p.64.
Não me perguntem o porquê da vida / pois as respostas não sou eu que as tenho, / olhem dentro do coração que canta / para encontrar a razão e sentimento.
Não tragam queixas de sentir amargo / para que as misture com as minhas, / não sejam tristes se a felicidade / errar de porta e seguir seu destino.
Caminhantes somos numa terra fria / e desolada que nos cobra sempre / uma entrega total de vida e sonho.
Não te entregues ao rio que vai levando / o tempo, as coisas e as gentes do mundo, / numa corrida cruel sem contraponto.

Finalmente, mais um último brinde ao leitor. Transcrevemos o poema “Retrato do poeta”, onde se pode sentir mais uma das facetas deste autor que soube/sabe, transfundir as esferas do emocional, do intuitivo e do lógico que constituem sua própria essência e que, em sua unidade e em sua evolução existencial se refletiram na infância, na juventude e na maturidade. Enfim; toda uma vida dedicada à Arte Literária.
RETRATO DO POETA – p.48
Aos vinte anos escrevia versos, / as pessoas sorriam para ele / porque era jovem e belo / e escrevia versos.
O tempo passou, o poeta / ficou mais calado e triste / e sua poesia continuou a mesma / de profundos e noturnos ritos. As pessoas passaram a olhá-lo / com o olhar de piedade e de mofa / com que se olha o bobo da aldeia.
O poeta indiferente a tudo, / ligado sempre à secreta fonte da palavra, / esperou envelhecer com toda a calma.
Faz versos escondido / com a vergonha e alegria da primeira vez.
Todos olham com ternura aquele velhinho / que faz versos feito um menino.

Livro: “Memórias da febre” – Poesias de José Eduardo Degrazia. – Editora Penalux –Guaratinguetá – SP, 2023, 118p. – ISBN: 978-65-5862-422-6
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https://www.editorapenalux.com.br/loja/memorias-da-febre?manufacturer_id=28
ou; https://www.facebook.com/joseeduardo.degrazia
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