Um Milhão de Mim

Um Milhão de Mim Cirilo S. Lemos




Resenhas - Um Milhão de Mim


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Paulo 26/12/2023

Na boa tradição dos romances borgeanos, Cirilo S. Lemos nos traz uma narrativa instigante sobre metalinguagem e o que entendemos como realidade. Esse é daqueles romances de fritar o cérebro em que tentamos criar várias soluções possíveis para os mistérios apresentados pelo autor. E nessa tradição, todas as respostas podem ser verdadeiras ou não. Depende do seu ponto de vista. Ao longo das páginas, o autor brinca com as palavras, muda sentidos, troca personagens, tira coelhos da cartola. Alguns leitores se sentem incomodados com uma explicação mais clara sobre a trama. No meu caso, não me importo. Prefiro deixar que o autor me guie pelo seu labirinto de escolhas possíveis e, se for deixado sozinho no labirinto, tento buscar a saída por mim mesmo. Apenas para descobrir que estava errado. E tudo bem. Assim como Luiz Brás, Cirilo S. Lemos é uma das raras vozes brasileiras que conseguem escrever nesse estilo, culto, profano e evocativo. Consegue realmente nos deixar nos labirintos da metalinguagem.


E sobre o que é a história? Certamente não vou conseguir dizer a vocês o que é e nem tenho a esperança de resumi-la em um parágrafo. Mas, tentemos. O detetive Borges está investigando a morte de uma estranha mulher chamada Telma que, por coincidência, é Telma Borges. Passado algum tempo da investigação, o detetive é chamado para prestar depoimento sobre o assassinato da mulher, no qual ELE é o principal suspeito. Só que Telma não é Telma, e sim Doralice. Em um momento do passado, você e Ariadne tentam fugir de um labirinto de proporções colossais, onde uma criatura chamada de Asterios os persegue impiedosamente. Ambos foram enviados pela Fata Morgana para tentar descobrir as manipulações de Uqbar. Na Itália renascentista, Nicolau Maquiavel vê sua posição como nobre sendo motivo de risos na taverna local e ele decide escrever um tratado para um líder local dando conselhos sobre como lidar com seu governo. Mas, alguma coisa está errada. E em uma cidade desolada no futuro, as pessoas tentam se manter sãs ingerindo cápsulas de Uqbar, uma substância viciante que as mantém felizes. O protagonista é um lutador que entra nos ringues para garantir sua porção da pílula. Mas, o que é ou quem é Uqbar?


Sem dúvida alguma, Um Milhão de Mim é uma narrativa desafiadora. Daquelas que vão fazer você ler e reler trechos para compreender o todo. O leitor desatento será punido pela confusão. Ou seja, sugiro se sentar numa boa, de forma relaxada e ler sem pressa. A narrativa é em segunda pessoa, ou seja, o autor torna o leitor participante de seu processo de escrita. Se pararmos para pensar mais atentamente, o próprio livro representa o labirinto de Borges. Tencionamos atingir o seu ponto central, adquirir algum conhecimento secreto e depois sair desse labirinto, sem atrair a atenção de seu guardião. Cirilo brinca com a escrita narrativa se utilizando de vários mecanismos e formas de escrever. Seja uma carta, um relatório, um interrogatório; ou até a mudança na disposição das palavras com frases em pontuação ou com palavras colocadas lado a lado representando um fluxo de pensamento. Tudo isso vai ao sabor de como o autor vislumbrou o que queria escrever. A narrativa é formada por subtrechos numerados que chegam, de forma crescente, até um número X e depois retornam, decrescentemente até o zero. O ápice é a obtenção deste conhecimento secreto.



Muito mais do que uma leitura, Um Milhão de Mim é uma experiência narrativa. Quantos mundos poderiam existir nos livros de ficção? Quantas versões de um personagem? Nós, leitores, somos criadores de um verdadeiro multiverso de ideias e vidas as quais temos acesso toda vez que abrimos um livro. Uqbar pode ser entendido como o vazio do esquecimento e, simbolicamente, poderia representar o fim dos mundos imaginados. A gente pode encontrar vários significados para a representação deste lendário local borgeano. Na minha compreensão (que pode não ser a sua), Uqbar seria a destruição de nossos universos imaginados a partir de uma vida monótona e estática. Quando os leitores deixariam de adentrarem nos universos fictícios em prol de uma existência regrada e sem graça. A felicidade obtida em pílulas, as quais nos fazem apenas aceitar e assimilar aquilo que alguns poucos desejam que façamos. Quando percebemos o desespero de uma vida sem a ilusão e a imaginação, entramos em desespero. Quando esse desespero chega a um ponto sem volta, apenas deixamos de existir. Somos sugados por um buraco negro que leva a essas cidades fictícias onde o ato de existir é apenas uma vaga burocracia.


Gosto de como Cirilo faz acenos sutis a diversos autores em sua narrativa. Por exemplo, sua própria forma de escrever me faz pensar em Luiz Brás e em sua maneira pouco ortodoxa de pensar suas linhas. A narrativa pode ser escrita de uma forma irregular e o sentido vai sendo decifrado pelo leitor pouco a pouco. Mesmo a maneira como as frases são compostas não precisa seguir algum tipo de regra. É quando a escrita assume os contornos de uma expressão artística. Lógico que o conceito de desenvolvimento de personagens se torna algo inócuo ou relegado a outro plano e mexer com metáforas e simbolismos se torna mais importante. O enredo também é sutil e suas amarrações a uma concretude ficcional são frágeis. Não há problema nenhum nisso. Vale pensar na expressão ficcional como um processo compartilhado entre autor e leitor. Vários teóricos da literatura entendem que a partir do momento em que o autor termina de escrever seu livro e este é publicado, ele perde a autoria do mesmo. O leitor se torna co-autor do mesmo, dando novos significados ao que ele está lendo. Significados esses que podem não ser o que o autor pensou em um primeiro momento. Tudo isso que escrevi aqui pode não ter nada a ver com o que Cirilo S. Lemos quis escrever. Vai ver ele quis escrever apenas sobre um detetive carioca sendo investigado por uma agência do período da ditadura brasileira por um crime de adultério que ele nem sabe que cometeu. E todo o resto da história são apenas mentiras insanas que ele criou porque toma pílulas de rivotril. Vai saber?


Um Milhão de Mim é um livro sobre escrita. Sobre ler e escrever. Sobre autor e leitor. O quanto fazemos parte desse processo de escrever. É também sobre o quanto não devemos nos acomodar como leitores, sempre nos desafiando a explorar outros universos. A brincar com diversas versões diferentes de mundos e personagens, criando conexões entre eles. A não ter medo de entrar em um labirinto metafísico e encarar o minotauro epistemológico que deseja apenas silenciar nossas mentes e nos tornar parte de uma realidade distópica. É um livro provocativo, reflexivo e bastante subestimado pelos leitores que ainda não deram sua justa atenção a ele. Ou estarão todos como medo de Asterios?

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