Lutos finitos e infinitos

Lutos finitos e infinitos Christian Dunker




Resenhas - Lutos finitos e infinitos


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edu basílio 26/08/2023

perdas

o curso natural de nossa vida inclui perdas.
perdemos pessoas porque -- o mais emblemático -- elas morrem antes de nós. ou porque elas decidem sair de nossas vidas, ou porque edulcoramos suas imagens por anos, décadas, até o dia em que quem elas são de verdade se desvela, demolindo nosso (auto)engano. perdemos empregos, perdemos dinheiro, perdemos um ideal de carreira, perdemos uma fase da vida que passou, perdemos relacionamentos, perdemos as chaves, perdemos a fé, perdemos uma caneca fofinha de cerâmica que cai e se estilhaça e que simbolizava algo bonito para nós.

algumas perdas são repentinas, buracos que se abrem sob os pés da gente em um terremoto de magnitude extrema que geólogo nenhum previu, e a gente cai, e continua caindo... ["I could fall and keep on falling, I could call and keep on calling, wonder why this love is over, wonder why it's not forever." -- enya já externou lindamente na canção even in the shadows].
... outras despontam lá longe no horizonte e vêm em nossa direção lenta mas inexoravelmente, dando-nos a chance de algum preparo, parco que seja, para a dor da subtração que ela trará. há perdas que trazem alívio e há aquelas que trazem culpa -- além das que trazem culpa exatamente por trazer alívio. há também perdas que já vão tarde.

todas elas nos requerem um processo de luto, um "trabalho de recomposição, simbolização e subjetivação da perda, (...) um percurso de transformação do eu rumo à produção de um afeto normal e uma nova identificação." a maturidade do pós-40 e a psicoterapia de anos me ajudaram a começar a entender que meu sofrimento desproporcional frente a um conjunto bem específico de atitudes dos outros e de contingências da vida têm raízes em dois lutos antigos meus: um que eu trunquei à força e outro que até eu mesmo ignorava que existia. essa consciência nova me traz, hoje, alguma esperança de mais resiliência e mais leveza no tempo que me resta de caminhada por aqui. é por coisas assim que precisamos falar (e ler) sobre o luto, com a ciência de que essa empreitada demanda coragem. e foi disso que nasceu meu interesse por este livro.

mas, por favor, leia bem devagarinho o trecho seguinte:
           "(...) práticas coletivas como a escrita, o luto compartilhado e os ritos sociais de reparação são exemplos de inclusão da perda no fantasma, como dispositivo discursivo, histórico e narrativo pelo qual um luto singular pode se tornar infinito do ponto de vista de seu porvir. apesar de isso estar largamente presente nas incursões estéticas de freud e lacan, ainda não está claro como a sublimação atua sobre a fantasia e pode ser reconhecida senão como um processo histórico no qual o universal representado por uma vida aparece desprovido de conceito. ainda assim, a repetição mimética do trauma, a narrativização catártica do luto e o trabalho de nomeação pela escrita, modo recorrente como condição e lugar de ultrapassagem do sacrifício erótico sádico-masoquista (supereu), da culpa e da ligação com o objeto."

se você, como eu, se sentiu quase como se o trecho estivesse escrito em outra língua que não o português, ufa! -- é um pequeno consolo me sentir menos sozinho na terra dos leigos.
(e cá entre nós, independente da minha ignorância semântica no tema, não consigo me desfazer da impressão de que há um problema sintático com a última frase, em que parece faltar um verbo! nem vou criticar o pessoal da revisão editorial, que deveria estar tão confuso e cansado quanto fiquei eu).

é de fato o tema por que me interessei, mas codificado para um nicho de pessoas a que não pertenço. creio que para real proveito da leitura, é necessário entender bem as ideias de lacan e freud, ter familiaridade com conceitos e termos da 'psicanálise hard-core', além de estar disposto a explorar a etimologia desses termos em alemão e correlacioná-los com peças de shakespeare, mitologia grega, ritos xamânicos de tribos amazônicas e a antropologia de claude levi-strauss (só isso, pouca coisa). essa experiência de leitura quase certamente fará deleitar muitos psicanalistas e afins. já o público amplo, penso que se sentirá na maior parte do tempo como me senti eu próprio, fatigado, e ainda assim apenas dando voos rasantes sobre um assunto que tem uma profundidade abissal.

isso posto, é certo que algum proveito eu tirei da leitura. volta e meia um parágrafo, ou uma página até, pareciam se iluminar e dialogar com a parte de mim que se engajou a finalizar os lutos que estavam estagnados. um exemplo:
           "(...) a experiência da criança comporta perdas, mas não lutos, propriamente falando. logo, a reativação das perdas anteriores é incontornável e necessária, não apenas para que essa perda seja simbolizada pelas anteriores, integrando-se à cadeia de lutos do sujeito, mas também para que a elaboração dessa perda simbolize as perdas anteriores, eventualmente pendentes, criando, pela primeira vez, a experiência de luto."

e a vida ainda segue. há uma infinidade de outros livros esperando para serem lidos. ao fim e ao cabo, não considero que "perdi tempo". da leitura, saio tranquilo, com a certeza de que ela em si não me deixou nenhum luto adicional a atravessar. :-)

--
Marcelo 27/08/2023minha estante
Amigo, posso garantir que Freud é bem menos hermético e muito mais acessível do que esse trecho citado do livro de Dunker.
Mas que bom que concluiu a leitura. De alguma forma tenho certeza de que ela se assentará no seu ser e será frutífero no lidar das perdas e lutos. ?


edu basílio 27/08/2023minha estante
ei, celo =) sim, algo de bom ficou da leitura, isso é o mais importante. há muito o que metabolizar e é preciso apenas respeitar o tempo disso.
a sacanagem foi marketearem uma obra dessas com um sorrateiro canto da sereia: "ao convocar memórias pessoais e estudos desenvolvidos sobre o tema, (...) promove uma leitura sensível e humanizadora do trabalho do luto". mentira deslavada! este livro específico é altamente técnico, um texto do autor para os pares. espero que esclarecer isso seja útil para outros skoobers ;-)


Túlio 27/08/2023minha estante
Cara, me perdoe o palavrão, mas PQP! Que primeiro parágrafo lindo que vc escreveu!!!!


edu basílio 27/08/2023minha estante
c@r@I*0, túlio, que lisonjeiro, mais ainda vindo de um cara como você =) um desfecho feliz para uma resenha até meio rabugenta rsrs...


Túlio 27/08/2023minha estante
Sua resenha ficou mtp boa. Mto sincera. Entendi perfeitamente seu sentimento em relação ao livro.


Rodrigo1001 02/10/2023minha estante
Um livro tão complicado de assimilar quanto o próprio luto, por fim. Adorei a iluminação da sua resenha, Edu.


edu basílio 02/10/2023minha estante
brigadu, rods querido. há livros que são desafios e nem sempre estamos aptos a certos desafios, seja pelo momento, seja pelo nosso repertório -- como meu caso aqui. viva as próximas leituras :-)




Gabriel 26/11/2023

Profundo estudo do luto a partir da psicanálise
É um trabalho complexo, partindo de Luto e melancolia em Freud e o fim da análise em Lacan, para explorar o trabalho de luto contemporâneo. O livro é exigente, mas para quem trabalha na clínica ou pesquisa o luto é um estudo fundamental.
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