Thales.Santos 07/03/2024
Lembro que em dezembro de 2023, o NECVU, GENI e CESeC organizaram o lançamento desse livro no IFCS-UFRJ. Acontece que eu ouvi falar do autor bem antes disso, afinal, tenho amigo próximo que é jornalista investigativo na área da segurança pública (a mesma área de atuação do autor) e descreveu o Rafael como um dos maiores (se não o maior) jornalista da área em atuação aqui no Rio de Janeiro.
Quando soube do evento do lançamento, pensei comigo "não posso perder". No dia, compareceram alguns figurões da academia, que pesquisam já algumas décadas fenômenos sociais que são conhecidos na segurança pública: violência, polícia, letalidade policial, estrutura policial, gestão de ilegalismos, tráfico de drogas, milícias etc. Dentre esses figurões, Luiz Eduardo Soares foi escolhido para ser o debatedor da sessão.
Trago essas informações para chegar em um ponto fundamental: é muito claro como o autor delimita que se trata de um livro reportagem, que não possui pretensões de análises científicas, mas sim de se contar uma história. Lembro que durante a sessão de comentários do autor, ele a todo momento enfatizava isso e é justamente por isso que em vários momentos ele coloca falas de especialistas da área para trazer certas reflexões. Dentre os especialistas que ele traz no livro está justamente Luiz Eduardo Soares.
Acho que o mais próximo de uma análise sociológica que o Rafael chega é quando ele parte do princípio, que vai nortear todo o rumo desse livro, de que é impossível distinguir letalidade policial de corrupção. Não é coincidência a presença do Luiz Eduardo tanto no livro quanto no lançamento, afinal, ele é um dos pesquisadores da área que sempre bateu na tecla essa relação.
A compreensão disso, nos ajuda a entender também o porquê de muitas vezes o autor passar tanto tempo mostrando o início daqueles PM's na instituição e como eles começam a matar. A verdade é que a violência policial é uma excelente mercadoria, afinal, ela cria um mercado e o seu valor vai ser estabelecido conforme essa violência é exercitada. Isto é: quanto mais aquele policial for conhecido por ser matador, maior vai ser a sua propina. O seu "passe" (utizilando termos futebolísticos) é valorizado de forma considerável.
Para quem não sabe, Luiz Eduardo Soares também é um dos escritores de Elite da Tropa, o livro que Tropa de Elite adaptou. Eu, particularmente, acho o livro péssimo. Mas tem um momento que sintetiza tudo isso aqui abordado. No final da primeira parte do livro, o "Diário de Guerra", um major chega em um batalhão. Esse major, acostumado a viver na sacanagem, percebe de início que o CARA da área seria o tenente Silva (acho que é esse o nome) e o chama para uma conversa para desenrolar a sua entrada na sacanagem ali daquela área. Afinal, é aquilo, tem que saber chegar no sapato.
Em uma conversa franca o tenente Silva diz para ele que o pagamento varia de policial para policial, mas que o fator que contribuía para que aquele policial recebesse um cascalho maior seria justamente ser reconhecido pelos criminosos do local como casca grossa. Ou seja, para ganhar, tinha que colocar medo. Acontece que o major não estava acostumado a esse traquejo, a essa arte do desenrolo e acabou fazendo uma ação mais truculenta do que deveria, rendendo uma matéria de jornal e muita dor de cabeça.
Dessa forma, quando Rafael Soares começa contando a história de policiais como Ronnie Lessa, Adriano da Nóbrega, Pereira etc, ele está mostrando justamente que aquilo que é tão reverenciado entre os policiais, que seria a bravura e o tirocínio do agente que mata a "bandidagem", na verdade, vai criando condições para que esse sujeito amanhã seja chamado por um algum bicheiro para ser guarda-costa, é chamado ou acaba criando uma milícia, começa cobrar taxa de proteção em seu bairro e por ai vai.
Importante lembrar que apesar do foco do livro ser policiais militares, a atuação de policiais civis em grupos de extermínio, milícia, polícia mineradora etc também sempre foi bem forte, principalmente até 1990, quando a PC era ainda bastante ostensiva. O debate hoje sobre letalidade policial recai muito sobre a PM, mas naquela época, a PC que ocupava o foco dos holofotes. Prova disso é que nos anos que antecederam a constituinte, quando o debate sobre controle externo da atividade policial começa a ganhar corpo no debate público, o grande embate, na verdade, era do Ministério Público contra a Policia Civil. Primariamente, esse controle externo foi desenhado pensado em quem teria controle sobre a produção dos inquéritos e, também, como se aumentaria o poder do MP para fiscalizar mais propriamente a PC.
Nisso tudo, a PM passava despercebido, só ganhando mais notoriedade mo final da década de 1990 e início dos anos 2000, justamente o período temporal em que muitas das histórias do Rafael irá começar. Precisamos lembrar que a Scuderie Le Coqc, considerado o primeiro grupo de extermínio em atuação no estado do RJ, é formado inicialmente por Papa Charlie.
Infelizmente, a mídia policialesca (como o Datena, Wagner Moura e outros do gênero) sempre glorificaram figuras de policiais matadores, considerados grandes heróis. E como sabemos, esses programas afetam enormemente a população fluminense. O resultado disso é que esse tipo de policial são populares no imaginário social fluminense, mas durante muito tempo, de forma positiva. Aquele exemplo a ser seguido. Rafael Soares vem para nos mostrar que está na hora de acabar com isso, vamos tratar pelo que eles são: matadores e criminosos.