rekizone 27/10/2023
Spoiler: a maldição é que não dá para parar de ler!
Ler Pequenas Maldições é como entrar dentro de um sonho do qual você não tem certeza se quer acordar. Inclusive, admito que o júri ainda está em dúvida sobre eu ter despertado de fato ou não.
Mas sobre o que, exatamente, fala Pequenas Maldições? Em síntese, o livro conta a história de Anastasia, uma jovem garota meio-fada que, em busca pelo poder em uma sociedade machista e anti-magia, decide seduzir o príncipe Eric e se tornar a mulher mais poderosa do reino. O problema, no entanto, reside no fato de que 1) sua irmã postiça, Ella, se apaixonou perdidamente pelo dito príncipe; e 2) Gilles Beaumont, o Duque Amaldiçoado cujas três últimas noivas acabaram misteriosamente mortas, ressurgiu em sociedade com objetivos próprios que ameaçam acabar com os planos de Anastasia.
Como é possível observar pelos nomes, Pequenas Maldições é um ?retelling? do conto da Cinderela, embora utilizando uma roupagem nova e sendo contado do ponto de vista de uma de suas irmãs postiças, a Anastasia. Nesse aspecto, ressalto que a autora fez um excelente trabalho com a adaptação, desenvolvendo personagens antigos que todos nós conhecemos e introduzindo novos nunca antes vistos com o mesmo zelo e cuidado, sem deixar que nenhum fosse ofuscado pelo outro. E, em que pese muitos aqui já conheçam a história da Cinderela, fiquei surpresa ao perceber que a autora conseguiu realizar uma façanha impensável em seu livro: ela tornou aquela história unicamente /dela/. Vou explicar.
Quando se está adaptando uma história que já é tão conhecida a ponto de ser considerada um clássico, um autor pode tomar duas decisões: ele pode tentar inovar, modificando a história a tal ponto que apenas os nomes originais dos personagens se preservem, ou ele pode beber da fonte do material original, se mantendo relativamente próximo da história adaptada e apelando para a nostalgia do leitor (o que corre o risco de acabar caindo nos mesmos clichês de sempre). Caroline Carnevalle, todavia, me mostrou que há um terceiro caminho que pode ser seguido: você pode ser tão talentoso, tão hábil em sua prosa, que a história simplesmente se torna sua. Como assim você quer me dizer que Anastasia, Drizella e Ella não eram personagens dela o tempo inteiro? Que ultraje!
Brincadeiras à parte, existem, sim, remissões à história original. Existe o sentimento de recognição em alguns pontos da narrativa, como se a autora estivesse dando uma piscadela em nossa direção e nos lembrando do conto. Ainda assim, tudo foi tão envolvente que era difícil não pensar em Pequenas Maldições como um mundo à parte, somente de Caroline Carnevalle.
No que diz respeito ao enredo, admito que é uma leitura rápida e fluida. A escrita da autora não é cansativa ou arrastada; é, na verdade, encantadora e perspicaz, e consegue nos pintar um mundo inteiro de magia e mistérios com breves palavras. Além disso, os diálogos dos personagens eram divertidos e astutos, com toques de sarcasmo e petulância, o que tornava a leitura ainda mais deleitável.
(Minha única reclamação, porém, é que gostaria que o livro fosse tão extenso quanto o catálogo telefônico, pois estava tão imersa na leitura que devorei tudo rapidamente e depois fiquei me sentindo uma viúva desamparada de Pequenas Maldições. Mas enfim, prosseguindo).
Quanto aos personagens principais, comecemos por nossa protagonista: Anastasia. Anastasia é, em minha opinião, uma personagem muito bem construída, com tantas camadas e trejeitos que era difícil lembrar que não se tratava de uma pessoa real, de carne e osso. Por causa de sua personalidade forte, tive medo dela acabar se tornando mais um arquétipo batido de uma protagonista ?badass? dos livros atuais, mas fui deliciosamente surpreendida ao notar que esse não era o caso.
Anastasia é uma garota complexa, memorável e decidida, produto do modo como foi criada e da sociedade ao seu redor. Ela sabe bem o que quer e está disposta a fazer o que for necessário para alcançá-lo. Seus sonhos não envolvem coisas como amor e ela até o rejeita em um primeiro momento, mas é possível observar seu coração se derreter de pouquinho em pouquinho. Mais do que tudo, Anastasia é decidida, forte e extremamente ambiciosa, e eu admiro esses traços nela.
Sua maior qualidade para mim, contudo, reside no fato de que ela tem inúmeras chances de ser cruel, de agarrar o poder com ambas as mãos e jamais soltar, mas escolhe gentileza em seu lugar. Sua determinação não a cega e consome seu ser, mas causa um conflito dentro de si, o que formou um conjunto de freios e contrapesos em sua consciência que eu achei interessante.
Ressalto, ainda, que seus questionamentos e críticas sobre o machismo foram muito bem executados, sem serem jogados de maneira desajeitada pela narrativa apenas para mostrar que estavam lá; eles estavam intrinsecamente ligados ao enredo da história e foram tratados de maneira muito pertinente pela autora, sendo um tema de destaque e uma força motivadora por trás das ações da personagem.
E sobre Gilles? Ah, o que dizer sobre Gilles? Existem poucos personagens masculinos que, ao meu ver, incorporam tão bem a característica de ?personagens cinzentos com um leve desvio de caráter, mas ainda assim são grandes queridos?: Aaron Warner, Jacks, Kaz Brekker e Cardan são exemplos que guardo muito perto de meu coração. Eles são personagens imperfeitos e afundados em uma profunda agonia, que fizeram coisas verdadeiramente horríveis devido ao ambiente hostil em que viveram e pelas escolhas que tomaram. São personagens que vestem todos os dias uma armadura e lutam sozinhos contra o mundo, fazendo o necessário para sobreviver. São, acima de tudo, tidos como cruéis, persuasivos e inescrupulosos por terceiros. Porém, sempre gosto de ver sua lenta evolução ao perceberem que não precisam deixar esse mesmo mundo vil que os criou ditar suas vidas para sempre. Há espaço para amor, para esperança, para se permitir sentir de novo e colocar outras pessoas acima de seu próprio bem-estar? há espaço para desmontar sua armadura e encontrar a felicidade ?um pedacinho de cada vez?.
Com personagens assim tão complexos, muito se tenta recriá-los, mas é difícil acertar o tom exato. A linha entre ?bully? e ?apenas um cara que se acha mais dark do que realmente é? é fácil demais de se cruzar para ambos os lados. Gilles Beaumont, todavia, é exatamente como eu esperava que ele fosse ser: misterioso, charmoso, dono de uma lábia encantadora e um oponente à altura para a língua afiada de Anastasia, tudo isso sem ser tóxico ou intragável. Eles eram parceiros, iguais, e a complementação perfeita para o outro.
Eu amo o Gilles, em todas as suas falhas e imperfeições, em como seu comportamento era condizente com o que fora estabelecido sobre sua personalidade, em seu conflito interno e agonia. Como diria Anastasia, ?Temo estar obcecada por Gilles Beaumont. Temo ainda mais que ele saiba disso?.
Por fim, não poderia deixar de falar um pouco sobre o universo montado por Caroline Carnevalle. Tem algo tão vivo no reino de Valência que é quase como se a história houvesse acontecido de fato, ou talvez esteja realmente acontecendo agora, neste exato momento, em um universo alternativo. Se você colocar o ouvido próximo o suficiente das páginas, talvez até mesmo consiga escutar um batimento cardíaco e sentir um pouco de magia que escapa por meio de rimas pela brochura do livro (ou do Kindle, depende de como você está lendo).
A mitologia criada pela autora também é rica e pensada em seus mínimos detalhes, sendo apaixonantemente cruel em certos momentos e cruelmente apaixonante em outros. Caroline Carnevalle tem uma prosa capaz de fazer o mundo inteiro desaparecer e fazer crescer as densas árvores dos Bosques de Canterville ao seu redor, como se você fosse menos como um leitor e mais como um andarilho, explorando aquele bosque encantado, sentindo a relva em seus pés e correndo os dedos pelos troncos das árvores.
De certa forma, Pequenas Maldições pareceu-me ser muito mais do que um livro: pareceu ser um sonho trazido à vida, um portal para outro mundo, uma porta desconhecida apenas esperando para ser aberta? Isto é, até que eu lembrei que é exatamente isso o que torna os livros /livros/: a capacidade de te mostrar um mundo completamente novo, tão real quanto este em que vivemos, e te prender dentro das páginas.
Fazia muito tempo que eu não me sentia assim após uma leitura (tanto, de fato, que até havia me esquecido do sentimento), e só posso agradecer a Caroline Carnevalle por esse grande presente que foi ter ficado completamente obcecada por sua história e adicioná-la como uma de minhas favoritas.
(Ou será que deveria dizer que foi tudo uma astuta maldição?)