spoiler visualizarviniduma 03/05/2024
Sobre ficar e fugir de nós mesmos
Esse livro chegou a ficar maçante para mim. A manutenção da mesma dinâmica na nossa amada Lenu me cansou. Pretendia terminar apenas para por fim a essa tarefa. Me irritava profundamente a Elena presa em suas fantasias, suas obsessões. Coitada, precisa muito de uma psicóloga. Contudo, como tudo nos livros de Elena Ferrante, fui agarrado de novo. Aos trancos e barrancos senti que minha necessidade de ver autoconhecimento foi preenchida: Elena mudou.
Fui agarrado de novo na medida que Elena entrava no mundo de Mariarosa e do feminismo e descobria as construções sociológicas por detrás da mulher. Porém, o que mais me pegou de volta ao romance é o que está no final da página 347 e início da 348. Quando ela falava de Franco ela falava de mim.
Um adendo importante: assumo que o que considero excepcional e interessante é porque me diz respeito. É o que fala exclusivamente da minha personalidade. Não acredito que o conhecimento tenha valor se está desconectado da vida daquele que pensa, ou seja, são pensamentos e ideias que se justificam porque dizem respeito a minha pessoa. Você pode intervir e dizer: ora, mas daí não me interessa. Você está correto. Não perca tempo com essas palavras que escrevo. Enfim, voltemos ao tema.
Peço licença para trazer aqui a descrição mais completa do impulso masculino que vê em si a verdade do mundo: "talvez haja algo errado nessa vontade dos homens de nos instruir; na época eu era uma menina e não percebia que, naquele seu desejo de me transformar, estava a prova de que não gostava de mim tal como eu era, queria que eu fosse outra, ou melhor, não desejava simplesmente uma mulher, mas uma mulher como ele imaginava que poderia ser se tivesse nascido mulher. Para Franco, eu era uma possibilidade de ele expandir-se no feminino, de apossar-se disso: eu constituía a prova de sua onipotência, a demonstração de que sabia não ser só homem do modo certo, mas também mulher"
Faz uns bons anos que me interessei em conhecer e me aprofundar no mundo feminino. Várias foram as causas. A principal sempre foi uma sensação de me sentir empoderado, de fugir do modo de ser masculino, por meio do conhecimento do modo de ser feminino. Contudo, também sempre senti que isso nunca dizia de forma honesta meus sentimentos com essa minha obsessão. Não conseguia me entender. Porém, agora me entendo melhor. Não mudei nada. É o mesmo com outro conteúdo. Mantenho o modo de ser masculino. Sempre serei um homem. A literatura é poderosa por esses momentos. Ela diz o que é o mundo e as coisas sem a necessidade de apresentação e produção de conceitos. Mesmo que aquilo que é seja algo assim, meio terrível.
Pode parecer meio atoa esse relato, mas não acho. Porque o livro é sobre isso. A história de quem foge e de quem fica. Em um primeiro momento é a história de quem foge e de quem fica em Nápoles. Mas acho isso uma visão muito restritiva. É, na verdade, a história de quem foge e de quem fica da própria imagem construída da própria personalidade. É a história da Lenu ficando em seu papel de mãe e esposa, mas também a história dela fugindo do seu papel de mulher, de mãe e de esposa. É ela se empoderando no ritmo cadenciado, egoísta e prudencial dela. É a história da Lila fugindo definitivamente das garras do seu casamento, e alcançando uma forma de sustentar a si mesma. É a história da Lila que desde mais nova foi mais intempestiva e ligeira. Por isso é a história de quem fugiu e ficou primeiro. Mas também fugiu e ficou porque a Elena fez Deus e o mundo funcionarem para ela receber seus vencimentos e arranjarem um emprego ao Enzo. Como diz Lila, é a história que é, porque nada acontece de repente, mas apenas acontece da melhor forma que se permite acontecer. É a história de quem fugiu e de quem ficou da melhor maneira que pode.
E, junto das histórias delas, pelo poder infinito da literatura, é a minha história. A história daquilo que fugi e, por isso, daquilo que ficou em mim.
Um adendo: escrevi essa resenha antes do ressurgimento de Nino na história. Escrevi ela porque a passagem do significado do homem me foi muito forte e produtiva. Porém, a parte final do livro merece um comentário extra. Elena Ferrante sabe fazer literatura, Jesus amado. Como consegue, livro após o outro, deixar o clímax para os momentos finais e com tanta eficiência? Que potência literária, é impossível ser indiferente a trama e aos personagens. Sensacional. Pensei que me entendiaria, me apaixonei mais.