A vida é uma palavra muito curta

A vida é uma palavra muito curta Mário Baggio




Resenhas - A vida é uma palavra muito curta


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Krishnamurti 05/04/2024

A VIDA É uma palavra muito CURTA
“A vida é curta”. É expressão bastante usual e conhecida de toda a gente. Entretanto, ao lermos um título de livro como: “A vida é uma palavra muito curta”, uma luz se acende em nossa imaginação. Decorre daí um questionamento. Seria a vida curta de fato, ou ‘vida’ é uma palavra curta para designar todas as potencialidades de vivência e aprendizado de que está repleta a própria vida? Parece-nos pertinente a pergunta que, ao longo do tempo, arrastou imensa quantidade de humanos a se debruçaram sobre a questão. Reza a lenda que Cícero (106 a.C - 43 a.C) teria dito que “Embora seja curta a vida que nos é dada pela natureza, é eterna a memória de uma vida bem empregada. William Shakespeare (1564 -1616) acrescenta que “A vida é muito curta! Passar esse momento de forma vil seria um desperdício.” E Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) jogou água na fervura acrescentando que “Os homens dizem que a vida é curta, e eu vejo que eles se esforçam para a tornar assim.” Seja como for, não é preciso muita filosofia para concordarmos que vida, livre arbítrio, tempo e memória estão de tal forma entrelaçados que torna-se inconcebível refletir sobre a vida humana, sem essas palavras, mesmo em que pese a cronologia de ser curta ou não.

O senhor Mário Baggio acaba de lançar pela Editora Penalux “A vida é uma palavra muito curta”, coletânea de 65 breves textos de sua autoria agrupados em três partes distintas, mas não exatamente temáticas. Na primeira parte sob o título de “A eternidade do instante”, vale bem a epigrafe extraída de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. Alice pergunta ao coelho: Quanto tempo dura o eterno? E então o animalzinho responde: “às vezes apenas um segundo.”

Assim os contos agrupados nesse capítulo: Refletem bem àqueles milésimos de segundo que nos instam a agir, a optar, a decidir ante os dilemas da existência que a vida nos prega. Como a terrível situação em que se encontra um legista ao receber para a autópsia o corpo inerte e frio de uma menina de dezesseis anos, transformada pela maldade humana em reles prostituta de beira de rua. Está lá no texto “Um anjo”. A sensibilidade do médico nos toca profundamente na seguinte passagem: “Abri as pálpebras com cuidado e vi um brilho rápido na pupila, uma faísca, um triscar de palito de fósforo. Talvez tenha sido a luminosidade do refletor sobre o rosto, ou talvez não, não sei.” O “brilho rápido na pupila” que persiste mesmo em face da extinção daquilo que mais prezamos. A vida! Qual afinal o significado simbólico daquele triscar de palito de fósforo nos olhos da menina morta? que pensar sobre?

Ou ainda quando se tem toda a oportunidade de levar a efeito uma vingança premente, como acontece em “O rosto sob a navalha”, quando, nos tempos da ditadura, um famoso e terrível torturador do regime se vê em uma barbearia e, sem o saber, é barbeado amistosamente por um militante que teve vários de seus companheiros trucidados pela sanha assassina daquele cliente. A certa altura o barbeiro pensa: “Quantos companheiros meus ele torturou? Matou? Olha essa veia aqui no pescoço, espessa e azulada. Ele está de olhos fechados e eu serei certeiro, vai ser rápido, sem chance de revide. Questão de segundos, tenho o tempo e a surpresa a meu favor. Depois peço ajuda para sumir com o corpo.”

Questão de segundos, ou minutos que sejam, que decidem sobre toda uma existência. Veja-se o que acontece no conto tragicômico que é “Quarenta minutos”, no qual, um sujeito casado recorre aflitíssimo, aos serviços de um médico com o pedido de que o livre de sentir certo perfume de mulher. Uma mulher desconhecida com quem andou a praticar deslizes ‘compreensíveis’ de macho. Volúpias inimagináveis: “Ela não disse uma única palavra, só se despiu e me despiu. Deu a um homem o que nenhum homem jamais teve, mas que todo homem deseja ter. Em quarenta minutos perdi minha vida pra sempre. Não há um remédio pra isso doutor? Estou condenado? Bem; é conferir como acaba a encrenca...

Cabe-nos refletir que, a ‘condenação’, ninguém se engane sobre, advém justamente da realidade ventilada em outro texto. “O grito dos fantasmas”. Nossas vidas estão prenhes de memória, é ela quem “martela a carne”. Martela a culpa que inexoravelmente, a própria consciência desperta, como acontece dentro de um confessionário (imaginem só!) ... E é então que: “a culpa dentro de um homem, pode ficar fermentando a vida inteira, mas um dia ela tem que sair, senão ela explode feito um bolo que cresceu demais dentro do forno”.

Na segunda parte da obra, “O tempo em tempo de estio”, estão reunidas narrativas que de certa forma convocam o testemunho de outras criaturas de Baggio, aquelas premidas pelas consequências de seus próprios atos passados, ou sofrendo o mal que lhe fizeram. Como não se encantar profundamente com o diálogo eivado de humanidade travado entre dois amigos em um boteco como ocorre em “Desta vida, desta arte”? Um deles ainda rapaz jovem, o outro já idoso, sobre quem “a velhice desceu como desce o véu na cabeça de uma beata. Levinho, levinho, quase imperceptível. De um dia pro outro comecei a babar, veja você, e aí tomei consciência: Tô velho”. Por inúmeros ângulos e nuances segue o autor criando atmosferas ficcionais onde estão imersos seres que já cruzaram boa parte das existências, arrastando suas memórias, seus fracassos ou suas sublimações... São exemplos de tanto “O palhaço” e “Parecer um”.

Na última parte do livro, que tem o título sugestivo de “O futuro foi muito pior”, Encontramos ficções que relatam situações vivenciadas em nossos dias. Aqui, um homem imprensado em rotina de ganhar a vida, arrasta sua existência numa urgência de compromissos e obrigações que o impedem sequer de chorar a dor de uma vida assim. Adiante, o absurdo de relações amorosas tóxicas que levam um casal a conviver como dois estranhos sob o mesmo teto. Mais à frente um sujeito torna-se praticamente um retardado mental a dar ouvidos aos apelos de uma mídia ensandecida. Nada escapa ao olhar cirúrgico de Baggio, nem mesmo a idiotia religiosa que hoje – sim, o futuro chegou brutal! – afunda tantos nas lamas de fundamentalismos de meros interesses...

É realmente impressionante a capacidade criativa do autor que urde as mais diversas e impensáveis situações, colocando suas personagens ora dentro de um realismo descarnado com requintes de crueldade, ora imersos em prosa repleta de lirismo, ou ainda bailando dentro de um fantástico puro ou no maravilhoso. Não importa. As situações vão surgindo aos olhos do leitor que se maravilha dentro do caleidoscópio vertiginoso de nossos dias tão voláteis e cruéis. Assim a vida, palavra curta é verdade, mas sempre infinita em possibilidades. O fenomenal conto título tem uma frase (não posso dar spoiler aqui). Apenas a frase, que bem sintetiza a avalanche que é a existência humana: “Eu vou é sobreviver. Sobreviver é da minha natureza.”

Merecem registros ainda, à título de conclusão, os contos “Os leitores”, “O romance” e sobretudo “O ofício”. São textos antológicos sobre o ato em si de ler e escrever, embora não constituam propriamente metaficções, refletem sobre os livros, que não mudam o mundo, mas o homem que, em última instância, detém o poder de transformar o planeta.

Quando da publicação do penúltimo livro do sr. Baggio escrevi em resenha, que considero o autor como uma das vozes mais expressivas da contística brasileira contemporânea. “A vida é uma palavra muito curta”, legitima e amplia tal afirmativa porque consegue aflorar um pensamento – o do escritor –, que reproduz inúmeras situações de anseios evolutivos do ser a partir do aprendizado reflexivo. Um pensamento que, mentalmente, se disciplina de modo a harmonizar sua usina geradora, com o fim de se transformar em fonte de luzes para o leitor.

Livro: “A vida é uma palavra muito curta” – Contos de Mário Baggio, Editora Penalux – Guaratinguetá / SP, 2024, 222p. ISBN 978-65-5862-622-0
Links para compra e pronto envio: https://www.facebook.com/mariosergio.baggio ou https://www.editorapenalux.com.br/loja/a-vida-e-uma-palavra-muito-curta
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Alexandre Kovacs / Mundo de K 04/05/2024

Mário Baggio - A vida é uma palavra muito curta
Editora Penalux - 222 Páginas - Capa: Guilherme Peres - Imagem de capa: pintura de Witold Wojtkiewicz - "Crianças surpreendidas por uma tempestade" - Lançamento: 2024.

Em seu mais recente lançamento, Mário Baggio volta a nos apresentar um livro de narrativas curtas ou minicontos com base em um estilo que tem marcado a carreira do autor, normalmente associado a um realismo fantástico que desnuda o melhor e o pior do comportamento humano em situações cotidianas. Uma outra característica recorrente é a de reunir os textos direta ou indiretamente ligados em torno de uma ideia comum. Nesta coletânea, dividida em três partes: "A eternidade do instante", "O tempo em tempo de estio" e "O futuro foi muito pior", fica claro que a passagem do tempo, em toda a sua subjetividade, foi a grande inspiração de Baggio na maioria das narrativas.

Surpreende a inesgotável sucessão de argumentos e personagens que podem abordar temas pessoais em "Vazios", refletindo sobre a dor da perda de um ente querido ou problemas urbanos do nosso tempo, amplificados pela desigualdade social, como a violência de gênero, abordada com originalidade em "Angel". No entanto, podemos repentinamente sair do espaço urbano e presenciar em plena floresta "O instante brevíssimo", no qual leão, gazela e caçador enfrentam um momento de perplexidade. Que dizer então de "A melhor estação", protagonizado por uma cadela cega e abandonada nas ruas da cidade ou "Um elo a mais", exercício notável de violência e loucura.

No conto que empresta o título ao livro, "A vida é uma palavra muito curta", as consequências da absurda situação dos refugiados que precisam abandonar o seu país com tão poucas chances de sobrevivência: "Não sairia de seu país se ainda houvesse um país, nem de sua casa, houvesse casa." Identifico os reflexos da poesia improvável de Warsan Shire: "Ninguém deixa a própria casa a menos que seja a boca de um tubarão. / Ninguém põe os filhos num barco a menos que a água seja mais segura que a terra." O mesmo apelo de racionalidade pretendendo impedir que homens, mulheres e crianças se tornem apenas corpos abandonados em alguma praia distante.

Vazios
Um conto de Mário Baggio

Meu pai morreu mais de trinta anos atrás e, ainda hoje, há noites em que sua falta me desorienta e desconsola. Não consigo dormir. Quando a insônia fica insuportável e a ausência dele se transforma em algo tão sólido que se pode cortar com uma faca, pego o telefone e marco o número da velha casa onde nasci e me criei. Fiz isso várias vezes e até hoje nunca falhou: mesmo que a casa não exista mais – há um estacionamento no lugar –, meu pai sempre atende: "Alô, pode falar, quem está do outro lado?"

Ouço sua inconfundível voz de tabaco. Prendo a emoção e a respiração por dez segundos e meus olhos visualizam sua masculina figura de urso segurando o aparelho com uma mão e a outra apoiada na cintura. Aliviado, desligo sem dizer palavra.

Volto para a cama pensando que neste mundo há vazios que nunca serão preenchidos, e que o passado, quando volta à memória, tem a função de tornar o presente menos dolorido. Sei também que, se alguma vez eu responder, o encanto vai se quebrar, o milagre deixará de acontecer e eu não dormirei nunca mais.

A vida é uma palavra muito curta
Um conto de Mário Baggio

O homem carrega o menino no colo, arruma sua roupinha e canta uma canção em seu ouvido. aperta-o contra o peito e o beija na testa. As horas passam e ele não se cansa de mimá-lo. Não dá atenção aos conselhos dos amigos e parentes que, em vão, se aglomeram na praia e tentam fazer com que desista daquela loucura. Não sairia de seu país se ainda houvesse um país, nem de sua casa, houvesse casa. Aponta para todos as ruínas do bairro onde morava. "Vou esperar que joguem outra bomba?", grita, com raiva. "Você não vai aguentar a travessia", lamentam os outros, "não é desse jeito que se entra num barco com uma criança de colo. Você não tem noção do perigo. E, quando chegar a qualquer outro lugar, vai virar homem sem pátria. Seu lugar e aqui."

Ele não arreda o pé da areia, atento ao barqueiro que, a qualquer momento, dará a ordem para embarcar. Está convencido de sua decisão. Aperta mais o menino perto do coração, balançando o corpo em antecipação ao ritmo das ondas. Vira a cabeça para trás e grita para os que tentam fazê-lo desistir: "Só as pedras e as árvores são felizes aqui, porque são mudas e não podem se mover. Vão morrer na mesma terra em que nasceram. Meu filho e eu, não."

Uma velha se aproxima e lhe estende um alforje: "Tome, você vai precisar." Ele pega: "Obrigado, tia." Ela encosta os dedos na testa do homem e do menino, abençoando-os: "Vão na companhia de Deus." O homem ri: "Vamos não, Ele vai ficar aqui, ocupado demais em destruir o nosso país." A velha não desiste: "Vou pedir pra Deus te trazer de volta." Ele lhe dá as costas: "Não sou pedra nem árvore."

No colo do pai, o menino ainda dorme, alheio à vida de privações que o espera. Não tem entendimento de futuro. Não há garantia de que venha a tê-lo e de que suportará ser chamado de gente de segunda classe. Na terra estrangeira não haverá garantia de nada. O tempo deixou de ter importância. Um dia os refugiados chegarão a algum país e, com sorte, serão recebidos com alguma comida. Até lá o menino já estará morto e o pai o sepultará em terra firme, não na água.

O barqueiro anuncia: "Embarcar!" Alguém na beira da praia sobe na ponta dos pés para gritar: "O idioma, você não conhece o idioma, não vai entender nada do que disserem lá no estrangeiro." O homem, o corpo inteiro já dentro do barco: "O mundo inteiro conhece o dialeto da miséria." Outro corre até a beira da água: "Você vai morrer, infeliz!" O homem tenta sorrir: "Eu vou é sobreviver. Sobreviver é da minha natureza."

Segue a embarcação, feroz, perdida, devastando distâncias, carregando aquela gente que mira, espantada, o incerto, o desconhecido, a novidade, entregue à paixão inútil do desarraigo, à ilusão de uma vida nova. É uma gente que olha para o céu e intui vendavais, se agarra à beirada do barco e reza para que tudo acabe logo. Que pronto se materialize o que há de vir, porque a esperança não viverá muito mais tempo.

O país natal já se distancia. Não se veem mais o contorno e o claro-escuro da praia. A escuridão tem olhos felinos. Na despedida, a imagem da multidão que ficou abanando os braços dando adeus: ninguém teve tempo de tirar foto, em dois minutos tudo será lembrança sem registro que se possa acariciar com os dedos.

Dentro do barco, além do silêncio, só o murmúrio incessante das rezas. No colo do pai, o menino continua de olhos fechados. Mas não está dormindo.

Angel
Um conto de Mário Baggio

A primeira coisa que faço é trocar o nome na etiqueta assim que desfaço o embrulho. Os coreanos são umas bestas, não tem imaginação para nomes. Sarang, Boram e Yeoreum não são bons. São uma merda. Prefiro Suelen, Juliette ou Britney. O nome certo aumenta o meu desejo por elas, além de parecerem mais reais aos meus olhos. Tão mais reais que até engasgam quando trabalham. Mexem os quadris como profissionais, suspiram, choram e riem. Franzem as sobrancelhas quando se entediam. Fecham as pálpebras quando estão cansadas ou quando querem escapar de suas obrigações. Sei que, na maioria das vezes, elas fingem que chegaram lá, mas eu não me importo: eu sempre chego.

Apaixonei-me perdidamente pela última que comprei antes mesmo de rasgar a embalagem e tirá-la da caixa. Batizei-a de imediato: Angel. Porque pra mim parecia um anjo. Farta cabeleira, pele de cetim doce e perfumada, pés perfeitos, uma coisa de louco!

Pecebi com o tempo que Angel era um pouco preguiçosa e não gostava de estar todos os dias à disposição do seu dono, que por acaso sou eu, como deve ser desde que o mundo foi criado. Me senti enganado. Amanhã, sem falta, vou reclamar pro fabricante. Farei uma chamada de vídeo para a empresa coreana e vou esculachar com aquela gente. antes disso, nada melhor do que uma boa surrra na Angel pra que aprenda a cumprir com seus deveres. Todas as outras aprenderam.

Sobre o autor: Mário Baggio é jornalista e escritor. Nasceu em Ribeirão Claro/PR. Mora em São Paulo/SP. Tem cinco livros de contos publicados: "A (extra) ordinária vida real" (2016), "A mãe e o filho da mãe (2017), "Espantos para uso diário" (2019), "Verás que tudo é mentira" (2020) e "Antes de cair o pano" (2022). Publicou contos em várias revistas eletrônicas (Germina, Gueto, Crônicas Cariocas, entre outras). Participou da "Antologia Ruínas" (2020), "Tanto mar entre nós: diásporas" (2021) e "Antologia de Contos da União Brasileira de Escritores" (2021 e 2023).
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