Paulo.Vitor 31/07/2023
"No escuro, toda corda é cobra e todo padre é frade"
Primeiro livro de Realismo Mágico brasileiro que li. Não podia ser melhor, uma das melhores leituras que fiz no ano.
Preliminarmente, quero comentar sobre a escrita do José J. Veiga, que, me atingiu de maneira certeira, com suas descrições não exageradas, mas precisas, recriando perfeitamente o cotidiano de uma cidade pequena.
Os personagens criados e desenvolvidos são muito palpáveis, cada um de sua maneira e com sua própria história, que já nos dá ideia de personalidade baseada no pequeno, porém, detalhado contexto histórico de cada um. Eu tenho certeza que todo mundo já conheceu alguém com a personalidade irritante que sempre procura conflito de Amâncio, com o gênio forte e teimoso (de maneira boa) do Apolinário, ou com a timidez fofa de Pedro Afonso.
A leitura é fluida, e não é tão complicada, vemos expressões antigas e regionalistas, algumas continuam interessantíssimas, e a constante curiosidade e mistério em volta dos recém chegados estrangeiros e os conflitos subsequentes nos faz ler com a maior avidez e vontade possível.
Quanto ao enredo, pra mim, é definitivamente uma alegoria a algo, ao longo da leitura fui tentando decifrar e atribuir sentido, razão e significado a cada detalhe, na personalidade dos recém chegados, nas duas invasões dos animais, nas profissões e personalidades dos 7 personagens que tiveram contato com os estrangeiros, no pré e pós de cada personagem após o contato e creio que tive uma interpretação de certa forma diferente.
A partir daqui, vou comentar sobre os significados do livro, portanto, caso não tenha lido, pule esse parágrafo.
Sempre vejo alguns vídeos sobre o livro após o término da leitura, principalmente em livros como este, recheados de metáforas e simbolismos, e na maioria desses, é ressaltado a semelhança das dinâmicas políticas com o período da ditadura militar, principalmente colocando o povo de Manarairema como massa de manobra, colocando também os novos moradores da tapeira como opressores, como alguém que reduz os direitos, a liberdade, a cultura e até a felicidade dos prévios moradores, e definitivamente, não tem como se distanciar ou se abstrair deste pensamento, porém, eu ainda colocaria um adendo.
Pra mim, esses novos moradores que se instalam na cidade no começo do livro, além de todos os pontos previamente já comentados, representam também, o novo capitalismo, a nova burguesia, dizendo trazer o progresso para a cidade, tentando se aliar ao comerciante, ao marceneiro, ao ferreiro, e ao responsável pelo transporte, na tentativa de suprir as demandas, mas, vemos que eles apenas tentam tirar proveito dos moradores, exaurir estes, até de felicidade, como vemos mais claramente no caso de Geminiano. Os novos moradores não respeitam a cultura local, tinham sempre a fogueira rolando, gerando fumaça quase sempre, e agem como se fossem os donos de todos os lugares, além de usar da opressão financeira e até física, como no caso dos cachorros.
Vemos Amâncio tentando se integrar a essa nova classe, porém, ainda falta muito para ele, dono de uma pequena mercearia, tornar-se de fato um capitalista, este, é mais próximo, socialmente falando, de todos os outros da cidade, do que dos moradores da tapeira. (Já viram esta falta de consciência de classe em algum lugar?)
Quero ressaltar o trecho em que dois moradores tentam intimidar Apolinário, mas acabam os dois, se fazendo de bobos, ao se confundirem e se embolarem durante o discurso de intimidação, mostrando que na verdade, eles não conseguem sustentar essa superioridade que tentam pregar.
Ao final, vemos que a sociedade "antiga" é mais resiliente, unida e humana, e, ao resistir ao gado (que também tem significado político), acaba por afugentar os novos moradores.
De qualquer forma, com ou sem significado, o livro é uma delícia de se ler, o poder de um livro bem escrito é justamente esse, criar personagens palpáveis, em cenários familiares, conseguindo, ao mesmo tempo, nos deixar curiosos e ainda nos apresentar uma reflexão.
Como sempre, o gênero de realismo mágico vem me surpreendendo cada vez mais, recomendo demais a leitura, com certeza um dos meus favoritos do ano e da vida.