tesserato

tesserato calí boreaz




Resenhas - tesserato


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Alexandre Kovacs / Mundo de K 11/07/2020

calí boreaz - tesserato
Editora Caos e Letras - 108 Páginas - Projeto Gráfico: Cristiano Silva - Arte de Capa: Eduardo Sabino - Lançamento: 2019.

Para tentar explicar o efeito de uma quarta dimensão, além do universo tridimensional conhecido, formado por largura, comprimento e profundidade, utiliza-se o efeito de uma figura geométrica que não existe na realidade, chamada de tesserato ou hipercubo. O conceito básico parte do princípio de que, assim como o quadrado é formado por linhas perpendiculares e o cubo é constituído por quadrados perpendiculares, o tessarato é gerado por cubos perpendiculares em uma suposta quarta dimensão, simultaneamente perpendicular às outras três.

Uma interessante característica do tesserato é que, apesar de não mudar de forma, podemos vê-lo de maneiras diferentes, segundo nosso ponto de vista. Assim, começa a fazer sentido a relação dessa curiosa abstração geométrica com a poesia de calí boreaz que também parte de elementos básicos, transformando os conceitos e sentidos originais em múltiplos elementos.

No entanto, toda essa argumentação sobre geometria pode passar a ideia de que os poemas da autora sejam o resultado de intrincadas e obscuras composições, nada mais falso. Prova disso é o trecho abaixo do genial poema em prosa chamada intento (p. 11), que funciona como uma espécie de declaração de intenções e introdução ao livro:

tentativa é uma palavra bonita. porque é corajosa a ponto de se permitir errar, trair-se, não chegar. tem me obcecado um pensamento: saber não chegar onde se estava tão-pronto para chegar é tão bonito quanto chegar.

[...]

a verdade é que já tem muita coisa no mundo. escrevendo, não se imagine que eu queira acrescentar algo ao mundo. eu quero é subtrair algo do mundo – um obstáculo um tapume um floreio uma palavra demais, uma certeza.

quero escrever para simplificar – e isso pode ser bem complicado. mas eu (in)tento.

Tentando "escrever para simplificar", a poeta sabe que a fragilidade da palavra pode ser uma armadilha no caminho, mas também uma forma de surpreender o leitor. Afinal, "o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência – não existindo, pode ainda resistir? [...]", trecho do poema em prosa mamihlapinatapai (p. 54).

Tudo isso nos leva a concluir que "existir é difícil até para as palavras" como bem resume calí boreaz em * nota da poeta (p. 101), mas a vida, eventualmente, precisa de uma pausa no interior do poema como acontece em janelitude (p. 69) que, com o seu toque de surrealismo, nos convida para "tomar chuva e chocolate e prestar atenção nos deuses que não te prestam a menor atenção", uma perfeita definição para essa janela da alma que se chama poesia.

janelitude

ei ei você
tu, sim
vem cá
apoia-te aqui
no parapeito deste poema
descansa um pouco
posso servir um café, queres?
espera, não vás
pode ser chá
chuva
chocolate
também prefiro
também me acalma
isso, apoeta-te aqui
não bate o sol aqui
aqui é sempre meio madrugada
meio lusco-fusco
sim, também estou em trânsito
embora esteja aqui à janela
mas repara ela não tem vidro
porque isto não é uma casa
isto é um poema
espreita aqui
vês? não há móveis
também não há portas
por que eu chamo isto de janela
então?
boa pergunta
então fica mais um pouco
pousa esse peso
desamarra o cabelo
oi : )
eu reparei logo em ti, sabes
estavas a caminhar com muita pressa de
nada
eu também ando assim
e depois às vezes entro num poema
há vários vazios por aí
nunca tinhas reparado?
é porque nunca tinhas parado
se não se parar como é que se vai reparar
está pronta a chuva
pronto
chuva e chocolate é receita certa de parança
dizes tu portanto que
se não há portas cá dentro
não pode isto ser uma janela pra fora
pois não existindo assim
o próprio dentro e o próprio fora
não haveria precisança de janela
o próprio conceito de janela se tornaria absurdo
sem o dentro e o fora que a condicionam
à função de ser janela
isso está tudo muito certo
do ponto de vista arquitetônico
mas já te disse — isto
não é arquitetura
isto é um poema
achas que só o ramo é que está na árvore?
a árvore toda ela está no ramo esquartejado
assim como um país inteiro está no exilado
e a vida toda se deixa conter num segundo de ponteiro
assim como o universo cabe no teu cabelo
assim desamarrado
então
não são só o dentro e o fora que têm uma janela
a janela também tem em si o dentro e o fora
mesmo que neste preciso momento
a gente já não saiba quem
está fora e quem
está dentro
e por isso é que isto
é a janela de um poema
serve apenas pra parar
pousar o peso
desamarrar o cabelo
descansar um pouco
tomar chuva e chocolate
e prestar atenção nos deuses que
não te prestam a menor atenção

Sobre a autora: calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua e literatura romenas e tradução literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, Portugal e Brasil, 2018], é um relato poético do exílio e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. calí integra a coleção Identidade vol. II da Amazon Kindle [2019] com o conto islandeses. Seus textos têm aparecido também em várias revistas literárias brasleiras, portuguesas, galegas e mexicanas, bem como em exposições de Portugal e da Índia. Em 2020, surge seu segundo livro de poesia, tesserato, pela Caos e Letras.
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