Lucas 18/05/2016
Épica colisão entre história e literatura
É grande o desafio para um leitor mais compulsivo definir o que é literatura. Ela pode ser definida como uma representação artística que demonstre determinado contexto histórico; uma obra que se eternize nos corações de quem a conhece, passando esse sentimento de geração para geração; outra definição que diz respeito à literatura presume que a mesma é uma "poesia romanceada" de certa realidade. Partindo destes pressupostos, conclui-se que aspectos históricos são fundamentais para que se esteja diante da literatura em sua essência. E é isso que justamente pressupõe O Continente, a primeira parte da trilogia O Tempo e O Vento, do gaúcho Erico Verissimo: uma varredura da história do Rio Grande do Sul, com a inserção de personagens reais e fictícios (estes últimos incrivelmente bem construídos).
Erico jamais concebeu sua principal obra como um romance regionalista, que visava especialmente demonstrar a história e costumes de determinada região, usando de metáforas que acabavam representando a sociedade em questão. Em O Continente, a fictícia história de toda uma família, os Terra Cambará, é contada, desde seus antepassados e suas várias gerações subsequentes. A história do Rio Grande do Sul entra neste processo como o fio condutor da narrativa, que determina de forma direta a vida e trajetória dos personagens mais importantes. Em suma, Verissimo não usa aspectos metafóricos para contar a história do seu estado; a formação cultural e territorial do Rio Grande do Sul funciona como uma bússola, que "guia" os personagens e seus destinos durante toda a narrativa. Assim, o leitor tem contato com uma ficção grandiosa sob todos os aspectos, e acaba aprendendo de forma épica boa parte da história do RS, já que os personagens sofrem na pele (literalmente) os seus efeitos e consequências.
A história gaúcha é recheada de conflitos políticos e bélicos. Ali, muito sangue civil, indígena e militar foi derramado nos cerca de 200 anos que a trilogia comporta, e que correspondem à ocorrência da imensa maioria destas "pelejas" históricas (entre a metade do século XVIII até a primeira metade do século XX). Verissimo lança luz a estas guerras, e usa delas para construir personagens únicos, que refletem bem a personalidade singular e controversa do gaúcho, cujos traços gerais são presentes até hoje na sociedade do Rio Grande do Sul. Um dos grandes méritos do autor é justamente este: fazer dos seus personagens símbolos do cidadão gaúcho. Homens de "opinião", radicais, alguns machistas, mas honestos e inspiradores. Mulheres tão guerreiras quanto os homens, que sofriam caladas pela teimosia de seus maridos, mas tomavam partido para defender sua família, seu pão e seus descendentes. Indubitavelmente, o gaúcho de uma forma geral ainda tem grande parte dessa conotação no restante do Brasil, e certamente, Erico Verissimo ajudou a construir esta imagem pré-concebida do povo do RS.
Personagens épicos são vários nesta primeira parte da trilogia, mas é absolutamente relevante destacar três deles: Ana Terra, mulher forte e sofrida, cuja trajetória de vida foi profundamente marcada por tragédias, que mudaram o curso de sua história; Bibiana Terra, talvez o personagem mais duradouro de O Continente, sendo também uma mulher forte, cuja vida foi moldada pelos conflitos trágicos da época, mas que adquiriu um caráter contraditório ao final da obra; e por fim, tem-se o capitão Rodrigo Severo Cambará, homem de inegável valor, profundamente polêmico mas, inegavelmente, carismático ao extremo. Há vários outros personagens fantásticos, mas estes três, certamente, correspondem a um desenho perfeito do homem e da mulher do RS em sua concepção histórica.
Para fins mais práticos, O Continente é, segundo a crítica geral, a parte mais sublime da trilogia. Isso é particularmente justificável, sobretudo pela abrangência dos anos: conforme já citado, O Tempo e o Vento se passa ao longo de 200 anos, e só a obra que abre a trilogia tem um lapso temporal de cerca de um século e meio, abrangendo desde o Brasil Império até a embrionária república. Outro ponto que reforça esta tese reside na quantidade dos já comentados personagens fortes, presentes em maior número em O Continente. Esteticamente, a obra em volume único lançada pela Companhia das Letras em 2013 (para promover o filme nacional, dirigido por Jayme Monjardim, e na qual se baseia a presente resenha) é muito bonita, mesmo sem ter capa dura e orelhas. As páginas amareladas, e, principalmente, uma árvore genealógica da família Terra Cambará trazem beleza e utilidade à obra. Outro ponto magistralmente exposto está ao fim do livro: uma linha cronológica dividida por capítulo, que localiza nos anos os fatos reais e acontecimentos de O Continente, e que elucida formidavelmente a narrativa (mas deve causar spoiler, se for analisada em momento errado). A construção da história contada também é profundamente inteligente. Verissimo foi muito feliz ao montar uma narrativa interrompida da "atualidade" (fim do século XIX), intercalando com passagens antigas. O Sobrado e suas sete partes correspondem ao ponto culminante e mais atual do livro, sendo simetricamente intercaladas com outros capítulos que explicam a origem dos personagens principais, cujas histórias acabam desembocando no sobrado em questão. Estas voltas ao passado engrandecem profundamente a leitura, pois são relativamente independentes entre si e contam a história individual de vários personagens importantes. Isto deve tornar O Continente uma das obras mais prazerosas de serem relidas em partes isoladas, em especial estes capítulos determinados. Impensável, por exemplo, não ficar tocado ao ler a história de Ana Terra e de "Um Certo Capitão Rodrigo", maiores expoentes deste raciocínio, que podem ser lidos isoladamente no futuro, quando o leitor sentir uma saudade compreensível d'O Continente.
Por fim, o livro é singularmente maravilhoso, único na literatura nacional, pois conta de uma forma muito rica boa parte de um dos estados mais importantes do país, o Rio Grande do Sul. Como todo clássico, recomenda-se que o futuro leitor tenha um conhecimento prévio mínimo de algumas questões históricas do estado, especialmente a Revolução Federalista, com a rivalidade entre Chimangos e Maragatos, que possui uma popularidade imensa ainda hoje no RS. O entendimento prévio deste conflito é essencial ao que acontece no início da obra, no já citado Sobrado, com suas voltas ao passado. Os demais conflitos anteriores são razoavelmente bem explicados no próprio livro, mas uma pesquisa simples durante a leitura destes pontos engrandece ainda mais a percepção da obra em si, especialmente no que diz respeito a personagens reais que são citados (como o guerreiro Sepé Tiaraju) e lendas, eternamente populares no coração do gaúcho (como a Teiniaguá e o Negrinho do Pastoreio).
A conclusão de tal aventura, que é a leitura da obra, reside no estado sublime que o leitor se encontrará ao fim da história. E quando um livro deixa o leitor neste estado, de graça e perplexidade, certamente é porque ele é especial, histórico, eterno... Definitivamente, é a literatura em sua essência.