Cristian 16/10/2020
Vida e morte na zona de exclusão
É difícil descrever a experiência sensível de ler essa graphic novel (costumo não usar termos estrangeiros desnecessariamente, mas HQ ou "romance gráfico" não parece traduzir esse estilo de contar histórias ou fazer jornalismo). Não é uma "historinha", tampouco um romance. Parece algo próximo à fotojornalismo, embora não seja uma câmera fotográfica o instrumento; mas, sim, o carvão, os pinceis, o lápis esboçado, os pastéis e aquarelas. A multiplicidade de técnicas artísticas (da aquarela ao esboço vivo), a variedade de formas expressivas torna o trabalho dessa obra algo de uma beleza e sensibilidade enormes.
Mas não podemos nos enganar aqui diante da expressividade da arte: não é um livro de arte, mas um documentário. Um documentário da vida depois que uma região foi tocada pela morte. Permanecem ainda vivendo na Zona de Exclusão (círculo de 20 a 40 kms entorno de Tchernóbil) uma quantidade de pessoas impressionante. Aproximadamente 2000 pessoas seguem rotineiramente suas vidas nos vilarejos dentro ou na borda da Zona de Exclusão. Como transmitir a vida que resiste diante do imponderável, próximo à morte que espreita oculta em uma bela árvore, em um convidativo lago? Todas essas contradições são trazidas a nós pela técnica hábil do artista que foi lá na Zona de Exclusão testemunhar o pós-"apocalipse" de 1986.
Essa forma de narrativa, o jornalismo por graphic novel, tem crescido nos últimos anos (vide os trabalhos maravilhosos de Joe Sacco) à barlavento da desconfiança de que tal jornalismo seria menos verídico ou menos fiel à realidade. Mas é curioso como damos um status de verdade maior (se podemos medir a verdade em graus - o que é certamente temerário) ao testemunho oral gravado pela câmera do jornalista ou pelo gravador de áudio. Tendemos a achar que é mais verídico uma sequência de vídeos costurados pela fala grave e empostada, na voz de um Cid Moreira por exemplo, na televisão (como um Globo Reporter que já fez tanto sucesso) que na sequência de imagens realizadas em desenho e vividas pelo artista-repórter de uma graphic novel.
Isso tem mudado, ainda que lentamente. O fato é que não podemos dar mais fundamento epistemológico a uma narrativa que outra sem termos que nos comprometer com uma metafísica que privilegia certas técnicas de composição em detrimento de outras. Pois essa é a única diferença essencial entre um documentário do Globo Reporter (p.ex.) e o de uma graphic novel: o modo de composição da narrativa.
Cada técnica de composição, é claro, concederá maior destaque para um ou outro aspecto porque lhe é próprio do modo como essa técnica procede. Dito de um modo menos "ocultista": todos nós que amamos livros sabemos o quão diferente, da experiência imersiva de ler, é ver nosso romance predileto nas telas dos cinemas, ainda que saudemos o sucesso do diretor em fazer tal transposição com fidelidade ao livro. Cada maneira de expressão narrativa tem suas peculiaridades. Sabemos que o livro não substitui o filme e vice-versa.
Nisso que a graphic novel pode trazer de tão único para um documentário que o jornalismo da televisão não poderá alcançar. Nâo se substituem. Vi um documentário sobre o ocorrido em Tchernóbil ano passado. Tem seus méritos e ainda assim a graphic novel de Emmanuel Lepage me transportou para uma terra que eu desconhecia.
Esse documentário é, em síntese, o registro de alguns repórteres-artistas que vão à Tchernóbil, Pripiat, Volodarka para testemunharem os efeitos da devastação do acidente de 1986 nos dias de hoje. Em meio ao cenário por momentos devastador, há a acolhida do povo local que nunca pode se retirar de sua terra por diversas razões. Há crianças brincando na rua, há velhas mamuskas que oferecem bolo e vodka aos tão estranhos visitantes.
Objetivamente é isso, mas é muito mais que isso se você resolver fazer essa viagem com Lepage.