Fabio Shiva 01/07/2023
Quem é o herói e quem é o monstro? Cortázar recria o mito do Minotauro
Às vezes precisamos do olhar do outro para enxergar melhor a nós mesmos. Tive meu primeiro contato com Julio Cortázar em 2019, através de suas “Aulas de Literatura” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2019/05/aulas-de-literatura-julio-cortazar.html), que me fizeram perceber a minha vocação para a Literatura Fantástica. Pois até então eu acreditava estar escrevendo romances policiais como “O Sincronicídio” (http://youtu.be/Vr9Ez7fZMVA), ou de terror e ficção científica como “Favela Gótica” (https://youtu.be/FjoydccxJGA). Contudo sempre me sentia desconfortável com esses rótulos, porque tinha consciência de que as minhas histórias apresentavam um elemento a mais, um elemento “bizarro”, que não condizia com histórias policiais, de terror ou de ficção científica. Mas depois de acompanhar com muita atenção essas “Aulas de Literatura” do professor Cortázar, percebi com grande felicidade que esse elemento desconhecido não era “bizarro”, e sim “fantástico”!
Ainda no mesmo ano de 2019, tive a chance de ler no original em espanhol as “Historias de Cronopios y de Famas” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2019/05/historias-de-cronopios-y-de-famas-julio.html), em que Julio Cortázar põe em excelente prática suas teorias sobre Literatura Fantástica, o que só confirmou que esse é um lugar onde me sinto em casa. Desde então, aguardo em feliz expectativa a oportunidade de ler “O Jogo da Amarelinha”, considerado a obra-prima de Cortázar. Mas recentemente vieram me parar às mãos três outros livros dele, dentre os quais já fui logo pegando esse “Os Reis” para ler.
E que surpresa descobrir que esse é o primeiro livro publicado sob o nome de Julio Cortázar, em 1949, depois de um livro de poesias (“Presencia”) no qual adotou o pseudônimo de Julio Denis. Como afirma Ari Roitman no excelente prefácio:
“Os Reis é, na verdade, um Cortázar quase pré-cortazariano (...) e dá a impressão de constituir uma espécie de ‘ensaio geral’ para tudo o que brotaria a seguir de sua pena e criatividade fervilhantes.”
O texto é de fato bem diferente do que já li de Cortázar, primando por construções eruditas e poéticas. Algumas imagens que ele cria perduram na memória, como na comparação do labirinto do Minotauro com as “entranhas sem saída” de um gigantesco e inominável caracol!
Outra curiosidade a respeito desse texto é a curiosa semelhança temática com o conto “La casa de Asterión”, de Jorge Luis Borges, publicado em 1947. Retorno ao prefácio de Ari Roitman:
“Misteriosamente, dois gigantes da literatura de seu século, ambos profundamente argentinos, talvez até mesmo vizinhos de bairro ou convivas de café, produzem versões similares de um mesmo mito clássico: nelas, o Minotauro deixa de ser o monstro devorador de virgens e mancebos e se transmuta de vilão a herói. Mais do que isso: entrega-se à morte como redenção libertadora. Ao não se defender do ataque de Teseu, ele aceita altivamente, sem hesitar, o seu destino trágico.”
Finalizo com uma fala do próprio Cortázar, citada no prefácio, sobre o que percebi ser a essência temática de “Os Reis”:
“Teseu, o herói, é um indivíduo sem imaginação, que está ali com uma espada na mão para matar os monstros que são a exceção ao convencional. O Minotauro é o poeta, o ser diferente dos outros. Por isso o encerraram, porque representa um perigo para a ordem estabelecida.”
E pensar que depois desse primeiro livro, Cortázar só fez melhorar!
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