Clarispectiana 28/12/2020
As três Marias: o que a ti pertence?
Em alguns anos me dedicando a leitura, as sensações quase sempre inexplicáveis que elas propõem, decidi-me, já com receios, registrar os meus pensamentos sobre elas - as obras, e sobre mim - os sentimentos e lembranças que me tomam.
É para dizer que nunca mais fui a mesma. Entende?
Acabei agora o livro "As três Marias" de Rachel de Queiroz, e a sensação é de vida, de vontades, desejos, amores que ficaram no tempo, amores que se conquistam com o tempo. Sinto em meses, um fulgor, uma vivacidade, de se gritar que viva!, que dance todas as coisas, que o mundo é patético, aaah... é com tanto despudor que eu grito que morra", que morra também os laços indesejados do passado, aquela alegria febril e dissimulada, que se vá tudo em um sopro. é que Augusta me mostra uma outra Viva, o som é diferente, é como o vento, após um longo mormaço. Glória pula em meu peito a liberdade, as minhas escolhas, e a solidão tão só, e minha...
As lembranças voltam, e o prazer é imenso. Quero agradecer a minha professora Liana, por me apresentar essa escritora, por me mostrar outros caminhos na literatura, outras mulheres que criam mulheres em palavras. Lembro de quando me recomentou e emprestou "o quinze", e nascia ali uma nova escritora para o meu vão de criação de sentimentos. Logo depois me embebedo de Maria Moura, e a divido - com muita glória, com Leila; é que para nós duas a liberdade é urgente, estridente.
Rachel, esse ser mulher que em palavras cria um vida tão minha, nua, que parece eu em passado, passado, da construção da matéria.
Liana, obrigada por me permitir ter uma vida com algo, simples e feroz, como a leitura.
Ao ler as três Marias, me recordei, novamente, de uma professora, um grande amiga, um ser mulher, um esplendor de amor, Jacira. As Marias me lembra você, alguém que não conheci na mocidade, mas que para mim tinha/tem toda aquela beleza presente em Augusta, aquele cheiro fresco, é como poesia cálida e brusca, inquieta e confortante. Vejo em ti toda a força das mulheres que Rachel desenha em suas palavras.
A história se passa, inicialmente, em um convento no interior do nordeste, onde três jovens meninas se encontram e viram melhores amigas: Maria Augusta (Guta), Maria Jose e Maria Glória. e eu não esperava nada, a mim não foi prometido nada, então a surpresa foi um presente. A narrativa trás a tona, para mim, as esfinges de eu por eu, e o resto é composto por um silêncio, agora leve.
E a sede de viva e a mania de morte, as quebras de laços findos, a negação de Deus e suas peripécias, e claro - sempre a insatisfação.
Porque recompor a sua própria carne/massa também é ...? Negar?!
Tudo tão simples, mas essas meninas trazem traços, gostos, desejos tão nossos, tão meus, sei que alguns são os teus também. As personas são completas e paradigmáticas, é tão explorado os vários eus femininos (?), aqui eu me pergunto, o que Ser? o que é uma mulher? o feminino?... é aqui que eu paro e não retorno. Além de distinções físicas, com o masculino, o que me torna um ser feminino?, é porque essas mulheres me agarram tanto ao fundo, ao interior de um eu degradado.
Penso que talvez, e que sá, a forma é feminina; o traço, já não sei.
então como dizer, como expressar que as Marias moram em mim e são tão mulheres na minha carne? é que a palavra 'mulher' para mim, tem um quê de dona de si, de pertencente, involuntariamente, a sua própria carne, sexo e pensamento. Não é mais um substantivo, transforma-se em adjetivo, outrora sentimento, um título, uma aura.
É a composição de uma melodia: a mim são todas letras, palavras, frases, quase sempre incompletas...porque sempre correm de mim, são o instante seguinte e já não me pertencem. De que compõe, do que ti própria é feita a tua fissura? Sei que tua carne pode também ser parte minha.
Então ser mulher é pertencer? Agora penso que sim.
Elas e eu pertencem ao quê, a quem, de onde?
- ao que não se finda.
Beatriz Braga, 02:06, 05/09/2020