Ana Sá 10/02/2022
Racismo, casamento e sala de aula
[Se você tem preguiça de textão mas está interessada neste livro, leia pelo menos a "Observação"* que fecha a resenha, pois, na minha humilde opinião, ali tem uma sugestão "prática" que pode fazer muita diferença na sua experiência de leitura]
Há livros que nos calam. E "O avesso da pele" (2020), ganhador do Jabuti 2021, me calou. Foi daquelas leituras que paralisam, que nos fazem pensar que precisamos pensar sobre o que acabamos de ler. E já aceitei que seguirei assim por um bom tempo.
Em linhas gerais, acompanhamos um narrador que nos apresenta a infância, a adolescência e a vida adulta de seus pais negros em uma Porto Alegre marcada pela desigualdade social e racial (sim, temos um romance urbano contemporâneo com recorte racial, o que não é tão comum de se ver!). E assim vamos percebendo as nuances do racismo cotidiano, que começa antes mesmo da própria criança se perceber negra.
Cabe ressaltar que o foco narrativo está na figura do pai, o protagonista Henrique, professor de Português. Mas a própria constituição do filho-narrador é um elemento interessantíssimo e importante do livro. A partir do olhar que Pedro tem da trajetória do pai, somos colocados diante de muitas questões relativas à subjetividade e à identidade do homem negro que vive na região Sul-Sudeste do Brasil. Contudo, longe de optar por uma visão essencialista, Jeferson Tenório trata da negritude em sua pluralidade, razão pela qual o colorismo pode ser apontado como um dos elementos recordados pelo autor, o que aproxima ainda mais seu romance dos debates contemporâneos sobre identidade racial.
"O avesso da pele" explora muito, e muito bem, as graves implicações psicológicas do racismo diário, com destaque aos efeitos da violência racial praticada e perpetuada pelo próprio Estado, que faz das rotineiras abordagens policiais uma máquina de tortura e humilhação de jovens negros. Vendo sua identidade ser socialmente reduzida à sua cor, Henrique vai descobrindo o "ser negro" como um perverso limitador do "ser", daí a importância que a obra dá aos efeitos psicológicos e subjetivos da discriminação:
"Pessoas brancas nunca pensam que um menino negro e pobre possa ter outros problemas além da fome e das drogas [...] E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar seus próprios infernos".
Como é possível notar, sim, o livro trata sobretudo do preconceito racial, mas vale registrar também que a narrativa não deixa de ser profunda e rica em detalhes nos demais temas que decide explorar. E este é um aspecto que impressiona: a capacidade do autor de conjugar a complexidade de diferentes temas atuais sem deixar nenhum fio solto, oscilando entre abordagens locais e universais de diversos conflitos sociais e humanos. Nesse sentido, eu destacaria uma tríade temática: o racismo (já mencionado), o casamento e a sala de aula.
Na minha leitura, em "O avesso da pele" o retrato do casamento fracassado e da precariedade da sala de aula, ambos brilhantemente tecidos, surgem numa dança incessante de aproximação e de deslocamento da questão racial na medida em que parecem servir a muitos contextos. Fazendo aquilo que se espera de um bom escritor, Tenório confere certa universalidade ao que ocorre a suas personagens, pois, o casamento falido de Henrique e Martha pode ser o casamento de muita gente, assim como a sala de aula de Henrique é, infelizmente, a sala de aula de muitos educadores no Brasil. E isso eu realmente gostei no livro: há uma desromantização das duas situações, de forma muito natural e coerente. Mostra-se que, às vezes, o casamento é apenas um erro, que lecionar numa escola pública pode ser apenas um tormento, tudo sem cair num pessimismo gratuito, mas desenhando uma justa e autoral representação artística do "é o que é". A existência de um professor que "falava de Shakespeare e de Ogum com a mesma intensidade e beleza" mora ao lado da carteira na qual um aluno viciado enrola um baseado. Pois, no romance, as coisas são como são.
Não vou deixar de insistir que gostei demais da construção-destruição do relacionamento do casal protagonista, pois adoro textos que exploram bem o desamor ou a impossibilidade desse amor que todo mundo quer, mas que ninguém nunca viu. São de uma visceralidade poética tamanha diversas passagens que envolvem Henrique e Martha, esse casal de desequilibristas: "Vocês não eram equilibrados o suficiente. Vocês eram equilibristas. A corda bamba como terreno dos afetos".
Eu diria que Jeferson Tenório serve um banquete literário neste romance, ainda que um banquete indigesto. Por isso, ao terminar "O avesso da pele", me lembrei de Conceição Evaristo quando ela diz que já foi o tempo no qual os negros contavam histórias de ninar para os da Casa Grande. E assim, livros como o de Tenório vêm precisamente incomodar esse sono injusto.
* Observação: se você está interessada em ler este romance, fuja da resenha da Amazon, da resenha da Companhia das Letras, ou de qualquer resenha comercial/oficial. Como uma amiga bem destacou, eles colocam já nas primeiras linhas um spoiler que pode transformar significativamente a experiência de leitura. Sei disso porque fui ao livro sem ter lido essas resenhas, e, com certeza, eu teria ficado irritada (como a minha amiga ficou), caso esses textos tivessem me privado de ser surpreendida na reta final. Faço essa advertência porque, a meu ver, o trabalho estético do autor passa por uma descoberta lenta do acontecimento-chave. Considero até desrespeitosa a resenha comercial do livro, pois ela pode ofuscar os pormenores do rico tecido narrativo delicadamente costurado por Jeferson Tenório. Enfim, fujam dos textos de divulgação!