Queria Estar Lendo 26/11/2020
Resenha: Meninas Selvagens
Meninas Selvagens, da autora Rory Power, foi lançado aqui pela editora Galera Record - e foi nosso escolhido para a Leitura Coletiva de Novembro. A história fala sobre uma ilha isolada em quarentena e sobre garotas abandonadas à própria sorte junto a uma doença mutante e mortal.
Hetty está presa na ilha de Raxter há mais de um ano. Uma doença misteriosa se alastrou entre as garotas que estudavam no internato daquele lugar e o governo sancionou uma quarentena rígida, sentenciando todas elas a permanecerem no terreno da escola até segunda ordem.
Com exceção dos envios de comida e medicamentos, o ano e meio se passou e nada mudou, com exceção da doença - que tomou não apenas as garotas, mas tudo que vive na ilha. Os animais não são mais os mesmos e até as árvores parecem diferentes.
A Tox, como chamam, é uma doença mutante. Ela toma seus corpos e os transforma em alguma coisa - mutações físicas bizarras que, aos poucos, consomem as garotas e as tornam mais próximas da selvageria que existe no mundo. Hetty só quer sobreviver até encontrarem uma cura, mas, quando as coisas começam a mudar em Raxter, ela percebe que pode não ter mais tempo até lá.
Meninas Selvagens é um livro bizarro, em resumo. Ele é aterrorizante na medida certa porque lida com o desconhecido e o terror das mudanças bruscas e de um risco biológico que ninguém sabe controlar. Lida com o medo porque as garotas estão abandonadas, praticamente à própria sorte, em um ponto inóspito do mapa, cercadas pela selvageria que parece tentar tomá-las. Lida com egoísmo, com amizade, com dedicação e com decisões abruptas quase monstruosas, mas que falam muito sobre caráter e personalidade.
"Mas que segredos são esses guardados em Raxter? Todas nós temos os mesmos horrores em nosso corpo, as mesmas dores, as mesmas vontades."
Eu gostei muito dessa experiência de leitura. No grupo da LC, era só surto sobre como nada fazia sentido mas ainda assim a história te investe em continuar tentando entender o que está acontecendo.
A história não te dá todas as respostas, e eu entendendo que possa irritar e perturbar as pessoas por isso. Mas tive para mim que, colocando a gente na perspectiva das garotas presas e ignorantes a tudo que está acontecendo, faz sentido os rumos que o livro toma
Não apenas pela Hetty, mas cada garota abandonada na escola - com exceção da Diretora e da Sra. Welch, as adultas da escola que entendem um pouco mais do que está acontecendo - está num abismo vazio e amedrontador. Tudo que sabem é que a Tox quer tomar seus corpos. Que os está mudando e transformando em alguma coisa; adaptando-as ao que essa doença quer para o mundo.
"É assim com todas nós. Doentes, estranhas, e não sabemos por quê. Coisas irromperam de nós, pedaços faltando e partes desprendendo, depois endurecemos e acalmamos."
Hetty, Byatt e Reese são as personagens principais - Hetty e seus medos e inconstâncias, Byatt e sua gentileza e frieza e Reese e sua complexidade. São personagens ótimas, extremamente bem construídas e, para mim, bastante cativantes de acompanhar. Não são boas pessoas, longe disso, mas na situação em que estão, não poderiam ser.
Hetty é inconstante porque ela quer estar ali pelas amigas - principalmente Byatt, seu mundo todo - mas também é muito marcada pelo temor de consequências. Quando uma ruptura se abre nela em relação a isso é que vemos sua personalidade real; a que não mede esforços e ignora o universo para proteger quem ama - que, inclusive, chega a se tornar selvagemente egoísta por isso. E eu adorei!
Byatt é um ponto mais incógnita e eu não vou falar tanto dela porque é interessante analisar a personagem no desenrolar da trama. Aos olhos de Hetty, ela é a âncora, o norte, o ponto de estabilidade. Mas, quando conhecemos mais de Byatt, entendemos que ela está longe de ser toda essa grandeza que a Hetty vê nela; como todo mundo, ela esconde seus demônios e horrores.
E Reese, por fim, que foi minha favorita justamente por ser a mais 🤬 #$%!& louca de lá. Sua vida inteira virou de ponta cabeça com a chegada da Tox e da quarentena - privada de ver o pai, que morava na ilha também, sem saber seu paradeiro há meses, Reese carrega muita amargura e ressentimento por isso. E com razão.
Ela é bastante complexa por se manter afastada, coberta por aquele escudo que impede as outras de enxergarem suas fraquezas - quando permite que Hetty se aproxime, no entanto, entendemos a sensibilidade e as rachaduras frágeis em sua postura destemida; ela é tão, tão incrível e eu queria ter tido um ponto de vista dela só por isso.
"Como não percebi isso? O calor no olhar dela, só meu e de mais ninguém."
O livro abre um pequeno espaço para um romance sáfico no decorrer da história e MEU DEUS COMO EU SOFRI POR ESSE CASAL! Não vou falar muito para não estragar a surpresa, mas é um desenvolvimento doce e doloroso porque poderia ter sido tão mais!
Os elementos de horror me lembraram bastante de Aniquilação - inclusive uma cena específica que se inspirou demais para o meu gosto. Tem aquela coisa de lidar com o desconhecido quando você está inserida nesse ambiente; não é uma ameaça distante e estranho, é uma coisa que está no seu corpo e ao seu redor e está mudando tudo gradualmente, e ou você sobrevive ou se permite consumir por ela.
Eu adorei como a autora usou isso para desenrolar a história. As respostas demoram e chegam em enigmas - são explicadas, mas levam seu tempo. E coisas ficam em aberto, sim. Como eu disse: estamos acompanhando a história pelo ponto de vista das garotas que não entendem nada dela. Não faz sentido fechar e costurar toda a trama quando o que elas estão vivendo segue o rumo que seguiu.
O fim é brilhante. Para mim, foi o melhor fechamento que esse livro poderia ter tido - e não, não tem necessidade de continuação. Certas histórias existem para perturbar e levantar questões e responder algumas, mas não todas, que é pra te deixar em confusão pensando muito sobre o que poderia acontecer dali para frente.
"Porque acho que estive procurando isso a vida inteira - uma tempestade em meu corpo que se igualasse àquela em minha cabeça."
Finais abertos são o melhor tipo de final e só minha opinião importa nessa resenha.
Meninas Selvagens passa longe da chamada que a editora escolheu para a história, mas não significa que é ruim por isso. Pegue para ler esperando um horror apocalíptico, uma trama que explora ameaças biológicas e mutações selvagens para falar sobre o mundo e a personalidade humana e o quanto ela se molda ao que está mudando.
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