Amanda 21/04/2021MowgliNarrativas como Mowgli permanecem com a gente por muito tempo, talvez por toda a nossa vida. São clássicos que tomam conta do imaginário infantil e continuam a ser repassadas por várias gerações, de uma forma ou de outra, mas mantendo a viva a essência da narrativa. Por esse motivo, a leitura de Mowgli não trouxe grandes surpresas, mas isso já era de se esperar. Ainda que eu não me lembrasse em tantos detalhes, bastaram algumas páginas para rememorar o filme e os contos infantis aos quais tive acesso.
Originalmente, as histórias de Mowgli foram lançadas no formato de pequenos contos publicados esporadicamente, até que o autor Rudyard Kipling os organizou em dois livros, chamados Livros da Selva. A edição da Zahar trouxe todos esses oito contos em um único volume com algumas ilustrações e um apêndice interessante, entitulado Dentro da Rukh, que configura o primeiro texto de Kipling sobre Mowgli, ainda um esboço do que se tornaria o menino lobo. E, como todo livro de contos, alguns se sobressaem, enquanto outros... nem tanto.
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que os contos são infantojuvenis. A escrita de Kipling é pensada para esse público, e, portanto, carregar um grande teor de lições morais, ensinamentos, além de ideologias e até mesmo preconceitos que acabam transparecendo das ideias expostas pelo autor. Lembramos que Kipling foi um homem de seu tempo, quando a Índia era colônia britânica, portanto há um embate cultural que acaba por transparecer em Mowgli, como a questão do paganismo indiano e a selvageria dos nativos, que precisam recorrer aos britânicos para compor a ordem local. Entretanto o autor acerta o tom em outras críticas, como quando enaltece a vida natural, a selva e os animais, listando pautas como preservação e respeito à natureza.
É interessante, inclusive, observar como os humanos em geral são representados na obra, sempre referidos como inferiores aos animais, posto que são cruéis, gananciosos, traíras e fanáticos, enquanto na selva há a pureza e o respeito. O tom positivista incomoda um pouco, é verdade, mas é possível compreender que o objetivo é que a leitura faça parte de uma formação mais consciente e com bons valores, sendo o julgamento do autor, característica essa presente em boa parte das obras infantis. Com Mowgli, no entanto, a coisa é diferente. Pela criação na selva, Mowgli reúne em si todas as virtudes que aprendeu com os animais, e mesmo quando é travesso, quando se vinga ou quando erra, o faz com a inocência do instinto e com a sensação de dever que tem para com a selva.
Como artifício para o diálogo com seu público infantil, Kipling utiliza a fábula como gênero textual principal de sua narrativa, dando não apenas voz, mas personalidade e humanidade aos animais. A pantera Baghera, o urso Baloo e a píton Kaa são animais honrados e extremamente leais a Mowgli. Alguns aparecem mais em alguns contos que outros, como A Caçada de Kaa, por exemplo, que tem um conto inteiramente dedicado às histórias da gigantesca píton com o menino lobo, mas a maior parte dos animais do convívio de Mowgli permeiam todas as histórias. Do mesmo modo, há também os animais cheios de vícios, como o Bandar-log (os macacos) e o tigre Shere Khan. Todos os personagens, no entanto, são bastante planos, sempre havendo o confronto puramente entre bem e mal.
Os oito contos de Mowgli, apesar de narrarem diferentes trechos da história do menino lobo, compõem uma grande narrativa com vários cortes, como saltos temporais e diferentes enfoques, mas cada um deles ajuda a montar a grande peça principal. Em cada um deles, Mowgli aprende novas coisas e passa por novas situações, e justamente por isso se faz tão necessário ter todos esses contos no mesmo livro. Apesar de alguns serem mais interessantes que outros, cuja leitura muitas vezes acaba se arrastando um pouco mais, eles se complementam.
A leitura de Mowgli pode não ter sido surpreendente ou fantástica, até porque perde-se muito da graça da leitura de um livro infantil na fase adulta, mas certamente é uma narrativa eternizada, com personagens carismáticos e muito queridos, como Baloo e Baghera. Kipling cumpriu plenamente com seu papel de cativar um lugar especial no imaginário de seu leitor, especialmente dos pequenos, tornando Mowgli um clássico relevante até hoje, principalmente se aliado a discussões críticas como as questões ambientais.
site:
https://www.ficcoeshumanas.com.br/post/resenha-mowgli-os-livros-da-selva-de-rudyard-kipling