Dara 30/12/2020
Relato sobre a solidão de deixar restos
"Vou adorar contar a história que contei pela primeira vez a Michelle Porte, que tinha feito um filme sobre mim. Àquela altura da história, eu me encontrava naquilo que se chama a “despensa” na “casa pequena”, que se comunica com a casa grande. Estava sozinha. Esperava por Michelle Porte naquela despensa. Muitas vezes fico assim em lugares calmos e vazios. Por longo tempo. E foi no interior desse silencio, naquele dia que repente vi e ouvi, rente a parede, bem perto de mim, os últimos minutos da vida de uma mosca comum.
Sentei no chão para não assustá-la. Não mexi mais.
Estava sozinha com ela na casa inteira. Nunca tinha pensado nas moscas até então, exceto para rogar pragas contra elas. Como vocês. Fui educada, como vocês, no horror dessa calamidade para o mundo inteiro, que transmite a peste e a cólera.
Cheguei perto para vê-la morrer.
Ela queria escapar a parede, onde corria o risco de se tornar prisioneira da areia e do cimento que se depositavam sobre a parede, com a umidade do parque. Olhei como uma mosca dessas morria. Foi demorado. Ela se debatia contra a morte. Durou talvez algo entre dez e quinze minutos e depois cessou. A vida precisara cessar. Ainda fiquei ali para ver. A mosca continuou parada junto a parede como eu a tinha visto, como chumbada a parede.Eu estava enganada: ela ainda vivia.
Ainda estou ali, a olhar, na esperança de que ela recomece a esperar, a
viver.
Minha presença tornava aquela morte ainda mais atroz. Sabia disso e
fiquei ali. Para ver. Ver como aquela morte invadia a mosca progressiva-
mente. E também tentar ver de onde vinha essa morte. De fora, ou da
espessura da parede, ou do sol. De que noite ela vinha, da terra ou do
céu, das florestas vizinhas, ou de um nada ainda inominável, talvez
muito próximo, talvez de mim, que tentava refazer os caminhos da mosca
no esforço de passar para a eternidade.
Não sei mais qual foi o final. Sem dúvida, a mosca, no final de suas
forças, acabou tombando. As patas se desprenderam da parede. E ela caiu
da parede. Não sei mais nada, exceto que sai de lá. Disse para mim mesma:
“Você está a ponto de ficar doida.” E sai de lá.
Quando Michelle Porte chegou, mostrei a ela o lugar e contei que uma
mosca morrera ali as três e vinte. Michelle Porte riu um bocado. Ela teve
um ataque de riso. Tinha razão. Sorri paia ela, como intuito de pôr um
fim naquela história. Mas não: ela riu ainda mais. E eu, quando conto de
novo a história para vocês, assim, a pura verdade, a minha verdade, foi
tudo como acabei de dizer, aquilo que se passou entre mim e a mosca, e
que ainda não se presta a risos.
A morte de uma mosca e a morte. E a morte em marcha para um determinado
fim do mundo, que estende o campo do sono derradeiro. Vemos morrer um
cão, vemos morrer um cavalo, e dizemos qualquer coisa, por exemplo,
coitado do bicho... Mas se uma mosca morre, não dizemos nada, não
registramos nada.
Agora está escrito. E, talvez, a este tipo de derrapagem não gosto desta
palavra — muito sombria que nos arriscamos. Não chega a ser grave, mas
d um fato em si mesmo, total, de um sentido enorme: de um sentido
inacessível e de uma extensão sem limites.
E bom também se o escrito conduz a isso, a essa mosca em agonia, quero
dizer: escrever o pavor de escrever. A hora exata da morte, registrada, a
tornava já inacessível. Isso lhe dava uma importância de caráter geral,
digamos, um lugar preciso no mapa geral da vida sobre a terra.Essa exatidão da hora da morte faria com que a mosca tivesse funerais secretos. Vinte anos depois da sua morte, a prova esta aqui mesmo, ainda falamos dela,
Nunca contei a morte dessa mosca, sua demora, sua lentidão, seu medo atroz, sua verdade.
A exatidão da hora da morte remete a coexistência com o homem, com os povos coloniza- dos, com a massa fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, na solidão universal. A vida, ela está em toda parte. Da bactéria ao elefante. Da terra aos céus divinos ou já mortos.
Não organizei nada em torno da morte da mosca. As paredes brancas, lisas eram já sua mortalha e fizeram com que sua morte se tornas- se um acontecimento público, natural e inevitável. Aquela mosca evidentemente estava no final da vida. Eu não podia me impedir de vê-la morrer. Ela não se mexia mais. Também havia isso, e de saber também que não se pode contar que essa mosca existiu.
Isso foi há vinte anos. Nunca contei este fato como acabei de contar aqui, nem mesmo para Michelle Porte. O que eu sabia — o que eu via — era que a mosca já sabia que aquele gelo que a atravessava era a morte. Isso era o mais assusta- dor. O mais inesperado. Ela sabia. E ela aceitava.
Uma casa só, isso não existe desse jeito. E preciso que o tempo passe ao redor dela, pessoas, historias, “reviravoltas”, coisas como o casamento ou a morte daquela mosca, a morte, a morte banal — a da unidade e do nome ao mesmo tempo, a morte planetária, proletária. A morte provocada pelas guerras, as montanhas de guerras que existem na Terra.
Naquele dia. Naquela data, deum encontro com minha amiga Michelle Porte, um fato visto apenas por mim, naquele dia sem hora, uma mosca morreu.
No momento em que olhei para ela, de repente eram três horas e vinte da tarde, um pouco mais: o ruído dos e litros havia cessado.
A mosca estava morta."