Neylane Naually 19/03/2024"Minha luta primária pela vida"Não é fácil se deparar com a matéria inumana de uma barata e a partir disso fazer o impossível (comer a barata, o "antipecado") enquanto passa por um processo de epifania, ainda mais difícil é escrever isso e mais difícil ainda é ler sem criar uma barreira entre o que está escrito e o leitor, talvez seja por isso que Clarice pede que A paixão segundo G. H. seja lido apenas por pessoas com "alma já formada".
G. H. tem uma boa vida e mora em uma cobertura no Rio de Janeiro. Um dia qualquer ela decide ir limpar o quarto da recém demitida empregada, mas se depara com um quarto já limpo e com desenhos estranhos na parede, feitos de carvão. Enquanto olha o quarto, ela se encontra com uma barata e o choque instantâneo desse momento faz com que ela esmague a barata com a porta do guarda roupa. Aí nós começamos a descer para o "inferno de vida crua".
Enquanto vê a barata morrendo, G. H. descobre um império. "Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama - era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade."
Ler uma página de Clarice equivale a 10 páginas de um livro comum, não pela dificuldade, mas pelo peso de quem conhece intimamente as palavras. E nesse livro ela usa esse conhecimento com maestria, mais uma vez. São menos de 200 páginas que contam a história de toda a existência, partindo do estopim de encontrar/matar/comer uma barata, de se deparar com a existência significativa da empregada demitida e com o "golpe da graça, que se chama paixão."
Enquanto lia até me questionei se eu estava devorando o livro ou se o livro estava me devorando. Os devaneios de G. H. nos levam por um labirinto de perguntas onde temos a respostas mas não sabemos exatamente de qual pergunta é essa resposta, só resta a esperança. Gostei muito da leitura.