OceaneMontanea 02/07/2015Esta (como quase todas do Skoob) não é uma resenhaEu tinha certo receio de Clarice Lipector por ter lido "Felicidade clandestina" por obrigação para o vestibular. Penso que naquela ocasião, eu não estava preparada para Clarice. Não só no aspecto da idade, pois eu já era até bem "velha", rsrs, mas também por não estar com a alma pronta, no momento correto, nem com a expectativa certa. Então resolvi pegar novamente Clarice, agora com "A paixão segundo G. H", que ouvi dizer ser uma das suas obras primas. Ainda bem que fiz isso. Diria que foi uma das melhores reconciliações da minha vida. "A paixão segundo G.H" para mim foi uma experiência sensorial, filosófica e literária. A história seria banal, se não fosse a escrita de Clarice, e não fosse o mergulho que ela nos faz dar na alma de G.H.
G. H. é uma mulher, aparentemente rica, eu a percebi até meio esnobe. Essa mulher está numa fase e num dia de especial reflexão sobre sua vida, seu mundo, sobre como ela se mostra para os outros, etc. Então, ela resolve fazer uma faxina na sua casa, começando pelo quarto da empregada que foi embora. Chegando lá, ela se depara com um local totalmente diferente do que ela imaginava. Ela pensava que aquele quarto ia ser escuro, sujo, entulhado, e o que ela vê é uma limpeza, um cuidado que ela não imaginava. Nesse momento ela encontra o outro, o desconhecido, aquilo que ela sempre procurou manter distante. E essa qualidade, essa clareza, essa limpeza e brilho do outro a chocam de uma maneira que faz desabrochar uma verdadeira torrente de pensamentos. Principalmente ao ver na parede do quarto um desenho mal feito, onde ela se enxerga a si mesma através do olhar daquele mesmo outro que ela desconhecia. A partir daí ela começa a pensar em como esse desconhecido a vê, em como ela construiu sua aparência para os outros. E ao abrir o guarda roupa ela encontra uma barata.
A partir desse encontro com a barata que ela esmaga na porta, ela começa a descrever a morte do bicho muito detalhadamente. Essa morte e a própria vida anterior da barata a levam a fazer reflexões muito cruas e puras sobre toda sua vida. Sobre morte, Deus, amor, rejeição, perda. E é um desespero. Por vezes eu me sentia como sendo puxada, levada por uma maré poderosa, muito além da linguagem. É uma cena muito rápida, muito banal, mas que G. H. transforma numa revelação. Ali ela pensa no que é Deus, no que é sua vida, no que é seu corpo, no que são os outros, no amor, enfim.
Acredito que a "paixão" se deva ao fato dessa revelação ser um tão desesperado encontro com aquilo que mais nos define, que mais nos faz mal, que mais nos assusta, e que pode ser chamado de paixão. Afinal o que é paixão senão isso, o encontro com o limite entre o humano e o divino, entre a vida e a não vida...?
Foi uma experiência! Não serei capaz de falar em tons acadêmicos sobre o texto. Posso falar sobre o que eu senti. Posso dizer que G. H. me puxou pra dentro e me mudou, pois muitas das reflexões dela eram também as minhas. A conclusão é uma desesperança, uma não chegada a lugar nenhum, mas algumas descobertas. E no fundo, um certo alívio por podermos voltar a vida cotidiana, fugindo desse encontro com o nosso eu, que nos persegue e nos aterroriza. Um livro para reler muitas vezes.