3.0.3 06/02/2024
A morte que nos faz manusear a vida por baixo dos panos
“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.”
Considerada figura de destaque na literatura brasileira, as obras de Clarice Lispector (1920-1977) têm significativa importância, e o livro A paixão segundo G.H. (1964) é considerado um dos trabalhos mais importantes da autora. Muitas vezes vista como uma escritora movida pela paixão, ela atribui à sua voz uma força que cadencia o ritmo das suas frases e que origina diversas ideias filosóficas. Clarice, inclusive, chega a sugerir que o conceito de infinito é arquitetado a partir de elementos finitos, entrelaçando, assim, os domínios mental e físico.
A sua escrita é movida pela diferenciação entre uma noção de eu e uma avassaladora torrente de sensações, que quase sempre nos deixa tontos. Ao captar as diversas vozes que sussurram ao pé de seu ouvido e manifestá-las na linguagem, compreendendo os seus mistérios, podemos dizer que Clarice Lispector tem essência de poeta, pois o que ela faz é uma espécie de alquimia com as palavras, transformando-as em algo encantador, atestando que “um mundo todo vivo tem a força de um Inferno”.
Por meio da dedicatória do livro, Clarice Lispector nos indica que embarcará em uma jornada com o leitor, assumindo a perspectiva de outro indivíduo, outra voz (ou vozes). Ao longo da narrativa, esse indivíduo a acompanha na busca pela transcendência, e o leitor se torna o pilar de apoio e consolo para G.H., que se vê isolada e desanimada, sem qualquer assistência.
A obra narra a vida mundana de uma mulher abastada de classe média alta que, em meio à sua rotina doméstica, se surpreende com a presença de uma barata dentro do quarto de Janair, sua ex-empregada. No entanto, ao percorrer o caminho até o cômodo, G.H. passa por um profundo conflito interior, suficiente para desconstruir a sua própria identidade. A partir desse ponto, ela embarca em uma viagem íntima, refazendo os passos de sua educação passada e investigando os aspectos de sua história presente. Nesse giro vertiginoso, desvenda ruínas de civilizações esquecidas, revelando o intrincado mosaico de vida que dela floresceu. É imperativo que G.H. confie em alguém. Para que ela cumpra o seu objetivo de dar movimento à sua existência, é urgente que ela encontre alguém que possa ajudá-la a compreender e a racionalizar a experiência que viveu e que ainda vive em si. Apesar de todas as tentativas, ela acha impossível guardar esse encontro com o seu eu mais íntimo.
O livro se desenrola no interior de um apartamento que funciona como um espécie de metáfora para a jornada interna da personagem G.H.. Nesse sentido, a presença de múltiplos significados fica evidente na obra, sobretudo as referências ao tempo e ao espaço, que assumem diversas interpretações, pois aqui “tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas”. Enquanto caminha em direção ao aposento de sua ex-empregada, a área de serviço transborda energias insólitas por todos os cantos do condomínio, e G.H. percebe que o ambiente é uma paisagem sem vida. Funcionando como uma espécie de rito de passagem, G.H. percorre toda a extensão do corredor para chegar ao aposento da ex-empregada. O corredor, nesse sentido, funciona como o caminho que conduzirá a protagonista para o interior de si mesma.
Quando chega ao aposento, G.H. experimenta uma profunda sensação de desapego e abandono. A atmosfera torna-se inquietante, levando G.H. a buscar a ordem em meio ao ambiente já organizado. Ela examina cada canto do pequeno aposento, que, apesar de também ser parte de sua casa, soa-lhe estranho. É durante esta exploração que G.H. descobre três esboços a carvão adornando as paredes, cada um representando um homem, uma mulher e um cachorro. Ao abrir o guarda-roupa, a barata surge na narrativa. O inseto olha para G.H., que a esmaga contra a porta da mobília. A partir desse momento, elas se veem presas. A barata perturba o psicológico da narradora, fazendo com que as suas emoções e os seus pensamentos desmoronem diante do inseto que não se cansa de perscrutá-la.
“Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda.”
Ao ultrapassar os limites da compreensão, G.H. desafia a própria essência da linguagem, chegando a um ponto em que as palavras não conseguem mais alcançá-la. No encontro entre G.H. e a barata, a sedução surge como força dominante. A natureza repulsiva do inseto se transforma em algo sagrado, criando uma linguagem que nos permite experienciar todas as nuances em seu mais profundo absurdo. Porém, como menciona a dedicatória, só quem tem a “alma formada” é capaz de decifrar o furacão dessa linguagem, indicando-nos que a vida deve ser sentida pelo poder que as palavras emanam. Libertando-se das fronteiras das normas, ela embarca numa busca aterrorizante, sem retorno. A substância que escorre da barata traz profundas revelações e expõe o seu lado mais oculto. Aquilo que se esvai do inseto é o que se esvai da narradora: a sua humanidade em uma explanação vívida que envolve todos os sentidos.
Quando G.H. descobre o oposto da linguagem como canal para outros significados, o seu próprio nome já não é capaz de defini-la. Ela percebe que as iniciais G.H. marcadas nas malas estão desbotadas. Não há como voltar mais ao seu estado anterior, quando o seu nome era suficiente. A urgência de compartimentar as experiências do mundo a faz perder a verdadeira compreensão das coisas, e a substância branca que vibra dentro da barata intervém nos instantes mais comuns para resgatá-la desse abismo.
Estabelecer um diálogo entre A metamorfose (1915), de Franz Kafka (1883-1924), e A paixão segundo G.H. é inevitável. Apesar das diferenças, ambas exploram o tema da metamorfose, embora a natureza das transformações vividas pelos personagens seja muito diferente. Gregor Samsa sofre uma transformação física que foge ao seu controle, enquanto G.H. sofre uma transformação interna voluntária. Os estilos de escrita empregados nessas obras também divergem significativamente. Narrada na terceira pessoa, a obra de Kafka é concisa e objetiva. Por outro lado, A paixão segundo G.H é introspectivo e subjetivo, escrito na primeira pessoa. As conexões livres e o fluxo de consciência da obra criam uma sensação de angústia e deslocamento. Em síntese, ambas as obras apresentam baratas, mas com propósitos contrastantes: a de Kafka simboliza a desumanização de Gregor Samsa, enquanto a de Clarice simboliza a humanização de G.H.
A Paixão Segundo G.H. é uma obra que explora os aspectos da condição humana, buscando a espiritualidade e a autenticidade. Embora o livro aborde temas profundos, Clarice Lispector entrelaça as trivialidades da vida cotidiana com muita habilidade, usando detalhes aparentemente mundanos como catalisadores para as profundas revelações que se desenrolam ao longo da narrativa. Segundo Clarice, inclusive, a maioria das pessoas permanece alheia à verdadeira essência da existência, contentando-se em viver num estado de confortável ignorância, evitando a terrível revelação que as espera.
A potência que existe na linguagem surge como uma ferramenta para explorar esses temas profundos e complexos. A paixão segundo G.H. desvenda as nossas verdades mais secretas ao desvendar as diferentes facetas que compõem a nossa existência. É uma obra que embarca o leitor numa viagem turbulenta em direção às nossas regiões mais densas. Com o apoio dele, ela descobre que abraçar a alteridade é uma jornada emocionante. O texto literário é crucial para refletir a autopercepção, servindo como canal para que o autor rascunhe a imagem daquilo que é ou finge ser. É por meio da linguagem que o leitor e o autor convergem e constroem os seus próprios mundos.
“Mas, se eu não forçar a palavra, a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.”