Marina 21/07/2020
Que leitura difícil...
Em "A paixão segundo G.H.", Clarice converte prosa em poesia e nos arrasta para o seu íntimo, nos fazendo partilhar dos seus sentimentos e pensar em nós mesmos.
O enredo é muito simples: uma mulher decide limpar o quarto de sua ex funcionária e lá, encontra uma barata. Tomada pelo nojo e horror, esmaga a barata entre as portas do guarda-roupa. Com o inseto preso ali, a mulher começa a observá-lo e se vê atraída por uma força que a faz provar da massa branca do bicho esmagado.
No livro, G.H. pede ao leitor que tome a sua mão, pois ela precisa de forças para contar o que viveu. A protagonista busca desesperadamente entender o que lhe tirou da normalidade à que estava acostumada. Para ela, sentir o novo, o incontrolável, é semelhante ao horror (ou ao amor, quem sabe).
"Como se uma mulher tranqüila tivesse simplesmente sido chamada e tranqüilamente largasse o bordado
na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra - abandonando sua vida, renegando bordado, amor e alma já feita - sem uma palavra essa mulher se pusesse calma mente de quatro, começasse a engatinhar e a se arrastar com olhos brilhantes e tranqüilos: é que a vida anterior a reclamara e ela fora".
Não é fácil ler um livro desses, nem acompanhar o fluxo de pensamento. Não há divisão de capítulos, então se pararmos a leitura, é difícil retomá-la depois.
Algumas reflexões trazidas por G.H. são tão íntimas e particulares (como a de um aborto) que existe o duplo trabalho de entender o que ela está falando e compreender o que ela está sentindo.
Logicamente, é fácil se identificar com muitos dos seus questionamentos. O que não e fácil é acompanhar o seu raciocínio à medida que expressa a sua incomodidade com a vida "em modo automático", reflete sobre a beleza e o neutro e quando se sente semelhante à barata, percebe que o animalesco é anterior ao humano. Ao tentar entender Deus e o humano, descobre o demoníaco.
Não estamos acostumados à poesia. Livros como esse exigem introspecção, dedicação e reflexão e hoje em dia é tão difícil parar a rotina corrida e fazer isso...
Depois de ler, sinto que tenho mais perguntas do que respostas. A experiência foi curiosa e de estranhamento. Espero conseguir ler novamente no futuro e perceber que amadureci a minha visão e entendimento. Por enquanto, estou cheia de dúvidas.
Alguns trechos legais (e beeem viajados):
"Perder- se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?"
"A espirituosa elegância de minha casa vem de que tudo aqui está entre aspas. Por honestidade com uma verdadeira autoria, eu cito o mundo, eu o citava, já que ele não era nem eu nem meu".
"Embaraçada ali dentro por uma teia de vazios"
"A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz".
"A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem lado direito nem avesso: ela é aquilo.
O que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado."
"Entende, morrer eu sabia de antemão e morrer ainda não me exigia. Mas o que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento chamado ?já?. Hoje me exige hoje mesmo. Nunca antes soubera que a hora de viver também não tem palavra. A hora de viver, meu amor, estava sendo tão já que eu encostava a boca na matéria da vida. A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par".
"Eu estava sendo levada pelo demoníaco.
Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio - o demoníaco é antes do humano".
"O inferno pelo qual eu passara - como te dizer? - fora o inferno que vem do amor. Ah, as pessoas põem a idéia de pecado em sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo é o do amor. Amor é a experiência de um perigo de pecado maior - é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança."
"Minha maior aproximação possível pára à distância de um passo. O que impede esse passo à frente de ser dado? É a irradiação opaca, simultaneamente da coisa e de mim. Por semelhança, nós nos repelimos; por semelhança não entramos um no outro. E se o passo fosse dado?"
"Ah, mão que me segura, se eu não tivesse precisado tanto
de mim para formar minha vida, eu já teria tido a vida!"
"Nós somos muito atrasados, e não temos idéia de como aproveitar Deus numa intertroca - como se ainda não tivéssemos
descoberto que o leite se bebe. Daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! quem esteve pouco fui eu - assim como diríamos do petróleo de que a gente finalmente precisou a ponto de saber como
tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está."
"Ah, falar comigo e contigo está sendo mudo. Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas, é mudo. Eu sei que isso te soa triste, e a mim também, pois ainda estou viciada pelo condimento da palavra. E é por isso que a mudez está me doendo como uma destituição."