Bell_016 16/01/2010
A Paixão de G.H nada mais é do que a Paixão de todo o Gênero Humano. Acompanhamos o processo de uma mulher se despindo das suas limitações humanas. Limitações que estamos tão acostumados a ver como provas de superioridade da nossa espécie, tal como a linguagem, a racionalidade, a individualidade, a civilização, mas que no fundo nos afastam da vida pura e simples, da matéria que somos feitos.
G.H (a personagem, todos nós) tão impregnada de "civilização" que não reconhece outra mulher como sua igual por causa de preconceitos de cor e classe social (tudo isso inventado por nós), indo mais além ela não reconhece a barata como seu igual (mas não somos todos animais?). A barata é feia? Mas feia por si só ou porque não condiz com o conceito de beleza que o homem criou? A barata é nojenta? Nojenta por si só ou porque vive nos lixos e esgotos que o homem criou? A barata que existia muito antes de nós vivia no lixo? Ela era, então, nojenta? Despida do nosso conceito ela nada difere de nós em sua composição, em sua ânsia por sobreviver, em sua primitividade.
Clarice a coloca até como acima de nós em sua integração com a natureza, com o divino, enquanto nós nos afastamos com a ilusão de superioridade. Inversão assim dos nosso valores culturais já vistos como "naturais" me fez lembrar um dos trechos mais lindos que já li da Insustentável Leveza do Ser quando acompanhamos Tereza e Karenin (http://www.svbpoa.org/index.php?Itemid=28&id=332&option=com_content&task=view)
Se no começo a narradora faz o possível para nos incutir o nojo à barata, no final procura fazer com que aceitamos a integração, que percamos o nojo. Mas será que alguém consegue chegar ao fim do livro sem ainda sentir esse nojo? Quem dera nos despir de preconceito fosse fácil, o drama de GH por páginas e páginas é doloroso, cruel, místico, confuso e inumano, e mesmo assim, nem ela consegue cruzar a linha da humanidade com total desapego, com total abandono.
As palavras que abrem o livro já diz tudo, há uma época certa pra ler Clarice, não desista se ainda não for a sua, retome-a depois, entregue-se ao livro como G.H. se entregou à barata, você só tem a ganhar.
"A POSSÍVEIS LEITORES
Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria."
C.L.