spoiler visualizarAndressa 11/06/2014
O sentimento de "oneness" em forma de poesia
Existe uma teoria, defendida pelos adeptos da prática meditatória, chamada "oneness" (perdão, desconheço o termo em Português para essa palavra, se é que há um). Trata-se do SENTIMENTO de "oneness", que é a sensação que se tem de estar em sintonia com todo o mundo e com todo o universo. Não, não apenas "estar em sintonia", mas o sentimento de SER o universo, de que se é um com o universo. De que o universo e os seres, tanto vivos quanto não vivos, são a mesma coisa. Um e o mesmo. One and the same. A isso se chama "oneness".
Foi nisso que a leitura de "A Paixão Segundo G.H." me fez pensar. Para mim, o que G.H. procura e encontra ao consumir a barata é, em síntese, o sentimento de "oneness". É o que ela chama de "o neutro", "o atonal", "o impessoal", "o Deus". Mas esperem, estou me apressando em demasia. Vamos com calma. Antes de refletir sobre o assunto, a ideia de "resenha" pressupõe que eu resuma sobre o que se trata a obra. Ou pelo menos foi o que me ensinaram na faculdade. Perdão. Vamos começar pelo começo.
O romance de Clarice Lispector narra a história de uma mulher da alta sociedade que, certo dia, tendo demitido a empregada, resolve fazer uma faxina. Ela decide então começar pelo próprio quarto da empregada, que provavelmente seria o local mais imundo do apartamento. Ao entrar no quarto, porém, tem a - desagradável para ela - surpresa de encontrá-lo limpo. Tomada pelo espanto e motivada por um desenho que a empregada rabiscara na parede, ela entra no quarto e fica ali, parada, a refletir. Depois de um tempo, seus próprios pensamentos e a conclusão a que chega de que a empregada a odiava a levam, num ato de revolta, a entreabrir a porta do guarda-roupas para avaliar seu interior. Eis que surge a barata.
A mera visão da barata provoca em G.H. uma série de reflexões, que culminam com ela, num ímpeto, esmagando a barata na porta do guarda-roupas. Horrorizada com o próprio ato, sentindo-se imunda por ter cometido o crime de matar, a mulher fica estagnada no quarto, sem conseguir deixar o ambiente. Enquanto isso, faz mais uma série de reflexões - e sente-se ao mesmo tempo perplexa e fascinada, assustada e animada, horrorizada e extasiada com seu ato.
Por fim, o raciocínio de G.H. a leva, impelida por seu desejo de conhecer "a verdade do neutro da vida real", a provar da matéria branca que escorre do interior da barata. Ao degustar da barata, G.H. passa por um processo epifânico em que o real e o "divino" a ela se revelam. É assim que G.H. descobre que a vida real, que a verdade das coisas é desorganizada, sem forma e sem nome e que ela vinha a vida inteira "humanizando" a vida, dando-lhe ordem e nome, que ela só sabia conhecer pelo nome. Que sentia o amor que chamava de "amor", mas que o amor verdadeiro, o amor neutro, não era isso. Que o amor verdadeiro, o amor neutro é aquele do tédio "que chamamos de intervalo de amor". Assim, a paixão, segundo G.H., é um estado de graça passageiro, que não se confunde com o amor real.
Quanta reflexão uma barata pode provocar! O brihantismo de Clarice está em sua capacidade de transformar algo absolutamente corriqueiro - como o horror de uma mulher a uma barata - em matéria para pensamentos tão profundos e complexos. Como um fato cotidiano - esmagar um inseto - provoca epifanias tão completas e arrebatadoras em suas personagens.
Através da barata, que representa simultaneamente a vida e o segredo da vida, e do medo que G.H. sente dessa barata, que não é se não o medo que ela sente e que sentimos da vida, Clarice nos fala da esperança, da fé, do amor, da paixão, do ódio, da fome, da alegria, da carência, da morte, do paraíso, do inferno. Fala-nos de temas universais sob perspectivas completamente novas, inusitadas. Fala-nos sobre a "terceira perna" em que muitos de nós nos apoiamos para viver, e que nos impede de caminhar. Fala-nos sobre essa mão invisível a que muitos se agarram, porque têm medo.
Metáfora após metáfora, Clarice vai lentamente construindo um raciocínio de desconstrução que pouco a pouco nos convence de que a vida que vivemos, a vida que defendemos e em que nos apoiamos está longe, muito longe do real de todas as coisas. Que para conhecer a verdade é preciso conhecer o sonho, mas estando acordado. Como fez G.H. A própria personagem nos convida: "Se tu puderes saber através de mim, sem antes precisar ser torturado, [...] se tu puderes saber através de mim... então aprende de mim, que tive que ficar toda exposta e perder todas as minhas malas com suas iniciais gravadas." (p. 115)
Por isso, esse é um daqueles livros que você DEVE parar para ler. É impossível lê-lo sem, junto com G.H., se construir, desconstruir e reconstruir. É o tipo de leitura, pois, que te engrandece, te acrescenta, que te marca. É um livro que nos faz repensar nosso cotidiano, a vida que levamos, e quantas de nossas verdades são realmente verdades. Mais do que isso, é um livro que nos leva a respeitar a vida em todas as suas manifestações. No ser humano. Na barata. Em nós mesmos. A vida real, tal qual ela é. É essa a grande lição que a personagem nos ensina: o amor neutro. A paixão segundo G.H., enfim.