rickspcrkr 16/02/2024
Escrevi para a faculdade, então estou postando aqui...
Em primeira instância, devo dizer que me sinto privilegiado por ter A Paixão Segundo GH como primeiro contato com Clarice Lispector. Adianto aqui que nunca antes um livro me despertou tamanha letargia e deslocamento de espírito como esse. Ao equilibrar a delicadeza das palavras com as mais duras verdades da natureza humana, Lispector faz jus não somente à sua fama, mas honra também a literatura com um tão belo uso de seu espaço.
A Paixão Segundo GH narra o processo de desconstrução de GH (cuja é a única determinação atribuída à personagem), uma mulher burguesa, que um dia se choca ao deparar-se com o quarto extremamente organizado de sua ex-empregada, o qual ela assumira estar uma completa bagunça. Uma vez que esse choque de realidade tenha ocorrido, GH começa a refletir acerca dos preceitos que orientaram seu modo de viver durante sua vida. Assim, a personagem nota que sempre se manteve numa zona de segurança e conforto que nunca se permitiu sair e que nem sequer notara existir. Dado isso, GH percebe que mal se lembrava do rosto da empregada e, mesmo sem conhece-la direito, criara uma série de imprecisões sobre sua personalidade. “Foi quando inesperadamente consegui rememorar seu rosto, mas é claro, como pudera esquecer? Revi o rosto preto e quieto, revi a pele inteiramente opaca que mais parecia um de seus modos de se calar[...]” (Página 31). A partir disso, a autora aborda não só o hábito humano de atribuir aspectos equivocados a pessoas e coisas, mas também evidencia o existente conflito entre classes sociais e questões raciais enraizadas em nosso cotidiano. Em seguida, ocorre algo que inunda a burguesa de ainda mais reflexões: o surgimento repentino de uma barata no cômodo. Tomada por um impulso de violência, GH parte a barata ao meio entre a porta do guarda-roupa. Tamanho nojo e repúdio desencadeia, então, questionamentos sobre as razões que evocam tanta aversão à imagem da barata. Decorrente disso, a personagem realiza uma retrospectiva histórica relatando a longínqua existência das baratas e o modo como, muito provavelmente, a humanidadeserá extinta e as mesmas permanecerão
habitando a Terra. Vale ressaltar o modo engenhoso como Clarisse Lispector utiliza da barata no texto como um elemento biforme: ela é tanto o animal selvagem quanto o próprio homem. Nesse contexto, a barata desempenha uma dupla natureza ao simbolizar pessoas como Janair, ou seja, indivíduos que compõem minorias e que constantemente sofrem negligências e violências simbólicas, sejam elas de forma intencional ou não. Aos corpos de pessoas como Janair, por exemplo, são associadas ideias de incivilidade, imundice, selvageria e regressão humana. No livro, essa realidade é descortinada por esse acontecimento. Decidida a não perpetuar essa conduta, GH resolve ir à procura do que ela chama de uma “visão neutra do mundo”. Nota-se no texto, também, uma ponte com a religião que é bastante pertinente. Essa visão neutra objetivada pela personagem alcança um debate teológico quando ela se refere à mesma como uma espécie de estado divino. Há um discurso feito por GH que remete ao costume do ser humano de atribuir ideias às coisas sem se questionar sua real natureza, e que esse mesmo costume se aplica para a concepção de Deus. O argumento sustentado é de que o ser humano sempre está em busca do divino, de encontra-Lo em tudo, mas que jamais exista a intenção de ser Ele, praticar os seus princípios ao contrário de apenas pregá-los. Como é possível observar, GH incita tal discussão no seguinte trecho: “E eu dera o primeiro passo: pois pelo menos eu já sabia que ser um humano é uma sensibilização, um orgasmo da natureza. E que, só por uma anomalia da natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo.” (Página 96). O divino também está presente no sentido de que toda esse desmontar-se de GH soa como uma grande revelação ou epifania. Ao longo do texto, Lispector faz uso de várias analogias para se referir ao modo como a personagem se sente durante esse acontecimento. No início do texto, a mulher compara esse processo com a perca de uma terceira perna que a ajudava caminhar, a qual agora ela sente a ausência e necessita aprender a conviver sem. Igualmente, existe a metáfora de uma mão que segura a de GH, como a personificação de um suporte emocional, e que resulta em uma das citações (em minha humilde opinião) mais belas do livro: “Por enquanto preciso segurar esta tua mão
- mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. [...] Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira.” (Página 12). Além disso, vale destacar o modo como essa epifania desperta sensações em GH como, por exemplo, a manifestação de um deserto. Ao adentrar o quarto de Janair e deparar-se com desmedidas contemplações, a impressão de GH é que ela fora transportada a um imenso deserto que assim como a verdade que ela necessita encarar, é extenso e árido, que ao mesmo tempo inunda-se como um mar de vida e, claro, perigos. “Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade [...]” (Página 46). Acrescenta-se que essas sensações relatadas são, em grande maioria, relacionadas à ideia de desnorteamento e perda de identidade. “É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.” (Página 6). Ademais, denota-se através do texto que GH se delonga tanto em seus pensamentos que é possível, ao longo da narrativa, identificar a transição das horas do dia. Por meio dele temos a informação de que a mulher entra no quarto às dez da manhã e só o deixa muito depois de meio dia. “Devia ser mais de meio-dia. Levantei-me antes mesmo de decidir, e, mesmo inutilmente, procurei escancarar ainda mais a janela já toda escancarada, e procurava respirar, ainda que fosse respirar de uma amplidão visual, eu procurava uma amplidão.” (Página 79). Num breve relato sobre um aborto o qual a personagem realizara, identificamos uma abordagem incomum (porém digna de reflexão) sobre a morte. “Aquela barata tivera filhos e eu não: a barata podia morrer esmagada, mas eu estava condenada a nunca morrer, pois se eu morresse uma só vez que fosse, eu morreria.” (Página 92). Retornando à ideia de que “ser humano é uma sensibilização”, GH encara a morte como um renascimento, uma extensão da vida para além da existência de si. No trecho demonstrado podemos notar que ela estabelece uma comparação entre si e a barata pelo fato de que a criatura teve filhos e ela não, o que na concepção dela, pode tornar a barata muito mais humana que ela por ter exercido o dom da procriação e estender si mesma a outro ser. Portanto, a ideia de morte retratada aqui seria, em outras palavras, um assassinato de si mesmo. O corpo na narrativa não representa somente a figura dos subjugados, mas também é tido como uma porta de acesso ao conhecimento, ao material puro e simbólico do que seria a existência. “A tentação é comer direto na fonte. [...] E o castigo é não querer mais parar de comer, e comer-se a si próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava a danação como uma alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma.” (Página 96). De tal modo, determinada a alcançar a verdade intrínseca da vida contida na carne da barata, GH devora parte da massa expelida pelo corpo esmagado do bicho e, enfim, se permite soltar a mão a qual segurara. Pela forma como retrata a complexidade da existência humana e os empecilhos por ela mesma imposta no seu modo de interagir com o mundo, considero A Paixão Segundo GH não apenas como um livro, mas uma própria filosofia de vida. Arrebatadora, transcendental e poética, a escrita de Clarice Lispector cativa e transmite bem a índole humana que é esse perder-se que, no entanto, é um achar-se.