leticiapinatti 17/01/2024
Artístico, desconfortável e intenso
Li ano passado, começo do ano, e não sei por que não escrevi ou postei sobre. No entanto, deixarei registrado aqui, neste agora, as minhas considerações ? as mais frescas, claro.
Começo afirmando não ser uma leitura agradável, daquelas que escolhemos ao fim do dia acompanhados de uma generosa xícara de café ou chá e nos preparamos para dormir. Nem mesmo se faz uma leitura gore a ponto de remeter à temática do horror. O intuito do eu lírico é gerar, sim, desconforto, no entanto, através do mórbido, de sentimentos soturnos como a solidão, angústia e, também, raiva; mostrando sombras e nuances desses sentimentos em contraste com o social e, ainda que veladamente, distúrbios psíquicos.
À medida em que conhecemos a história, a gênese, de Jean-Baptiste Grenouille chegamos a sentir certa pena do personagem, que nunca recebera uma dose sequer de amor. Desde o princípio, Grenouille é tido por anormal, estranho, sem graça e disforme. Crianças o afastavam, odiavam (sem eufemismo ou ironia, o ódio era o sentimento que nutriam), e tutores pouco o acolhiam, recebendo o devido fim no fim. Tais características insólitas tornavam-no peculiar e, de fato, Jean-Baptiste Grenouille era um solitário desajustado; preferia o silêncio à fala, o distante ao conjunto, a natureza às pessoas; conjunturas e preferências que não o incomodavam, na verdade, lhe faziam bem; pois detinha de uma qualidade, uma convicção, que mais ninguém fruía: experienciava de aromas, notas indescritíveis (Grenouille sabia que o olfato vivia em um universo infinitamente maior que as próprias palavras) e incomuns ao típico ser humano. Aqui, é possível reconhecermos a figura do sobrenatural, o traço do que poderiam qualificar etéreo, um etéreo obscuro. E, assim que tal obscuridade vem à tona, é ilógico e impossível romantizar as ações do personagem, independentemente de seu passado (se é que existe passado que justifique atitudes horríficas).
Mestre em odores e aromas, sendo capaz de defini-los com a precisão que confundiria e cresceria o olho de muitos, Jean-Baptiste Grenouille faz sua primeira vítima ainda jovem e, neste momento, principia-se uma necessidade obsessiva por encontrar e envasar o que consideraria o ?melhor cheiro?, ou melhor, o ?perfume do amor e sedução?, de maior significância e poder que o próprio Deus, segundo a perspectiva da narrativa/personagem. Neste ponto, a narrativa encontra-se nas entrelinhas do sublime, nos despertando diversas sensações ? e somente lendo para compreender tais sensações. Por esse motivo, a obra se faz tão instigante; é quase uma metalinguagem, um ato simbolista. Somos absorvidos, encantados, fascinados por suas tramas, tal como Grenouille pela rescendência de suas vítimas.
O final não carrega um sentimento de alívio ou de justiça, portanto, caberá a cada um, em autoconhecimento, determinar se lhe fora uma experiência boa ou ruim, desvirtuosa ou virtuosa. No entanto, considero uma ótima leitura para nos fazer lembrar de que o que sabemos é gota em um vasto oceano, e de que a sociedade é, maioria ou minoria, cruel e mesquinha.