Marcelo Rissi 04/12/2020
Notas sobre a pandemia e breves lições para o mundo pós-coronavírus (Yuval Noah Harari)
Mais uma leitura finalizada em 2020: Notas sobre a pandemia e breves lições para o mundo pós-coronavírus (Yuval Noah Harari.
Espero não "cutucar um vespeiro", tampouco soar presunçoso, mas gostaria de emitir, respeitosa e humildemente, minha opinião sobre a obra ?Notas sobre a pandemia e breves lições para o mundo pós-coronavírus?, do Yuval Noah Harari. Fico angustiado por relacionar diversas críticas contundentes a uma obra escrita por aquele que, recentemente, se tornou um dos meus autores favoritos da contemporaneidade. Acredito, porém, que a honestidade nas manifestações opinativas deve se sobrepor às simpatias pessoais que, por vezes, temos por alguns autores.
Yuval Noah Harari é um autor de qualidade inquestionável. Ph.D em História pela Universidade de Oxford, Yuval Harari vem se consagrando, mundo afora, como uma das mentes mais brilhantes da atualidade, sobretudo na abordagem de temas contemporâneos (e potencialmente aptos a provocar, a curto prazo, enorme impacto na humanidade e nas relações sociais), tais como inteligência artificial, algoritmos, "big data", bioética e biotecnologia. As suas conclusões e as suas argutas projeções, sempre brilhantemente embasadas, decorrem de aprofundado trabalho analítico, de raciocínios críticos e de minuciosas observações históricas e intergeracionais. Sua linguagem é simples e acessível, colocando assuntos complexos ao alcance da compreensão de todos.
Yuval Harari é, como se sabe, o autor das amplamente festejadas obras "Homo Deus", "Sapiens" e "21 lições para o século 21". Dessas três, eu apenas li (por ora) essa última, à qual, por sinal, atribuí nota máxima numa resenha que escrevi no aplicativo Skoob. A experiência literária de "21 lições para o século 21" representou, para mim, um verdadeiro choque de realidade, intenso e preocupante. Cuida-se de trabalho primoroso, que desfila entre retrospectivas históricas e projeções futuras dos caminhos da humanidade (e das relações sociais) a partir dos impactos da revolução tecnológica, em pleno curso.
Pois bem. Com expectativa elevada ? sobretudo por conhecer a indisputável qualidade do autor, fato evidente ?, adquiri esse recém-lançado trabalho, "Notas sobre a pandemia e breves lições para o mundo pós-coronavírus".
Não se trata, a rigor, de um livro, mas de uma compilação de artigos e de entrevistas que o autor concedeu a diversos canais de comunicação, sempre abordando, como tema central, aspectos da crise sanitária provocada pela covid-19.
Intimamente, e com certa apreensão, considerei um pouco prematura a ideia de elaboração de um livro sobre o assunto, tendo em vista, em especial, o fato de que a crise sanitária é ainda bastante recente, está em curso e as situações dela decorrentes não se consolidaram completamente (ao menos não a ponto, segundo penso, de permitir conclusões mais sólidas, definitivas e terminantes). Tratando-se, porém, de obra subscrita por Yuval Harari, resolvi arriscar.
Em dois dias, terminei a leitura, que é bastante curta (97 páginas, sendo que as dimensões das folhas são pequenas. É praticamente um livro de bolso).
De partida, destaco: a obra em questão peca bastante pela repetição. Tratando-se de compilação de artigos e de entrevistas girando em torno do mesmo tema central, é natural que o autor tenha repetido, por diversas vezes, as mesmas ideias, mas esse fato tornou a leitura um tanto repetitiva e, em consequência, um pouco cansativa. Ao converter esse material em livro, talvez tivesse sido interessante algum tipo de adaptação ou de edição a fim de evitar as constantes repetições sobre idênticos pontos e argumentos.
Reputo, porém, que esse não é o maior problema do livro.
É, de fato, louvável a iniciativa de elaboração de uma obra sobre um tema tão atual ? e ainda em curso ?, sobretudo considerando a forma com que o autor idealizou o desenvolvimento da ?narrativa?. Fê-lo ? como é comum em suas obras ? por meio de análise histórica e comparativa (aqui, a partir do estudo de outras epidemias enfrentadas pelo mundo, tais como a peste negra, o ebola, a gripe e a varíola).
Como se não bastasse, lançando-se num tema ainda embrionário e com tantas interrogações pendentes, o autor arriscou-se em projeções futuras não apenas das consequências sanitárias, mas também econômicas e políticas do mundo pós-pandemia. Essa ideia, um tanto desafiadora e ousada, era, à primeira vista (e ainda é), pertinente e importantíssima, sobretudo considerando a grande quantidade de informações desencontradas e ?fake news? com as quais temos nos deparado ultimamente. Tratando-se, contudo, de tema sobremaneira incipiente e ainda envolto por inumeráveis incertezas, muito do que é afirmado no livro, a meu ver, soa mais como uma projeção derivada da opinião do autor ? permeada, inclusive, por diversas frases de efeito ? a uma análise empiricamente subsidiada (o que decorre, naturalmente, como já afirmado, da incipiência do assunto e dos fatos, por ora). Justamente por isso, talvez fosse ainda um pouco prematura a ideia do autor ? ou de qualquer pessoa ? de se lançar e de se debruçar sobre esse tema, especialmente por meio da publicação de livro específico.
O autor, é verdade, lança luz sobre pontos fundamentais e importantíssimos, que devem, desde logo, chamar a nossa atenção nesse período pandêmico. Cito, como especiais preocupações do escritor, a necessidade de união e de cooperação entre povos e nações; a imprescindibilidade de adoção de agendas globais voltadas ao combate à pandemia, com líderes mundiais verdadeiramente comprometidos com essa causa unindo forças; a indispensabilidade do aumento da confiança das pessoas na ciência; e a incontornável necessidade de realização de grandes aportes de investimentos do poder público em serviços de saúde e de pesquisa.
Essas pontuações, porém, não consubstanciam, a rigor, novidades. E, quanto às incógnitas e aos aspectos mais polêmicos, lacunosos ou obscuros trazidos pela pandemia (e seus multifacetados impactos), o autor não antecipou grandes análises, tampouco propôs soluções concretas mais contundentes, limitando-se, no geral, a apenas (re)afirmar a incerteza do futuro (enfatizando, insistentemente, que as consequências pós-pandemia serão fruto das decisões atuais adotadas pelas nações, governos e líderes).
Essas assertivas são, evidentemente, verdadeiras, mas não carreiam ou propõem soluções concretas, o que, aliás, é natural e esperado. Afinal, ninguém detém, por ora, uma ?fórmula? ou um ?segredo? para resolver as intrincadas e complexas questões sociais, políticas e econômicas decorrentes do impacto desta que é, segundo o autor, a maior crise sanitária dos últimos cem anos (pelo menos). Talvez esteja aí, então, a principal ?falha? do livro: a abordagem de um tema atual, mas ainda incipiente e que, justamente por isso, forneceu, por ora, poucos subsídios para abordagens e análise mais críticas.
Penso, em suma, que essa obra se jungiu a isso: o autor, basicamente, apenas reafirmou aquilo que ele já vinha ? e vem ? apregoando e defendendo em seus livros e em suas exposições (faladas e escritas) sobre os temas que o consagraram (globalização, cooperação entre povos e nações, compartilhamento de dados etc.). Aqui, de novidade, ele apenas imprimiu foco na questão sanitária do coronavírus, reescrevendo, a partir desse viés, tudo aquilo que ele, anteriormente, já vinha lecionando e defendendo em seus livros, artigos e exposições. As observações são, evidentemente, corretas, mas desprovidas de grandes novidades. Como se nota, essa leitura não proporcionará grandes propostas de soluções concretas, tampouco informações inéditas. Aliás, inusitado seria se o fizesse, diante desse ?estado de coisas? [ainda] embrionário.
A iniciativa de abordar o tema foi arrojada, mas, porque um pouco açodada e prematura (na minha visão), acabou por pecar pela superficialidade, pela abstração e pela generalidade das ideias.
Com o decurso do tempo e com a consolidação dos fatos (e de suas consequências), espera-se que o autor, voltando ao tema central desse trabalho noutra oportunidade, e aproveitando-se de sua enorme e notória capacidade, inteligência e qualificação, lhe confira continuidade, partindo de onde aqui ele parou.
Talvez devamos encarar esse trabalho como um ensaio ou um exórdio para um tema que o autor, ao longo do tempo, desenvolverá com maior minúcia e detalhamento, a partir dos novos fatos e análises que a pandemia inevitavelmente trará e proporcionará.