Eric M. Souza 15/09/2014
O recomeço do mundo
Nos anos 50, um vírus asiático ataca o arroz e promove fome pelo continente, com ecos do caos chegando à Europa na forma de notícias. Um cientista próximo ao protagonista, em Londres, vai deixando-o a par dos acontecimentos. Tudo se parece resolver quando uma vacina é descoberta. Não muito depois, porém, outras quatro mutações do vírus se desenvolvem, atacando não só o arroz, mas toda as gramíneas. Da noite para o dia, toda a civilização está à beira do colapso pela fome. Assim se inicia uma aventura sem precedentes.
Confesso que eu não esperava muito de Chung-Li: A Agonia do Verde (um nome horrível para o belo Death of Grass, em inglês), de John Christopher. Por acaso vi o livro em duas listas das cem melhores ficções científicas do século XX e fiquei surpreso por não conhecê-lo. Procurando pela web, encontrava comentários de leitores dizendo "eu me mataria se isso acontecesse" e "ao terminar de ler o livro, abri a janela, olhei meu jardim e chorei". Depois disso, só havia uma certeza: eu TINHA que ler esse livro.
Comecei Chung-Li com ressalvas, meio de pé atrás. Costumo ser preconceituoso com histórias de terra devastada e uma família resolvendo seus problemas de relacionamento em meio a isso. Temia que fosse o rumo tomado pelo livro após ele começar mostrando dois casais amigos, filhos, etc. Não obstante, o autor não segue esse caminho óbvio e piegas.
O protagonista tem um irmão que mora no campo, num vale bem isolado. Ele faz uma visita e lá tem seu primeiro contato com a doença, quando o irmão lhe mostra vegetais decrépitos, já assolados pelo mal. E o irmão lhe diz que plantaria batatas e protegeria o vale a todo custo quando o caos se instaurasse. No momento, o mundo ainda era o mundo seguro, nossa poderosa sociedade ocidental que parece incólume, protegida de todo mal. Ele soa mais como um caipira lunático. E poucos meses depois, quando uns poucos ficam sabendo que Londres será bombardeada pelo próprio governo para diminuir o impacto da enorme escassez de alimentos, alcançar aquele vale em meio a um país sem governo, cheio de milícias nas ruas, parece ser a única salvação.
Chung-Li, porém, não se limita a esse mero enredo de bravos heróis amolecidos pela civilização precisando se barbarizar pela sobrevivência. Ele vai muito, muito além. Em poucos dias, os valores do mundo moderno perdem sua razão de existir. O ser humano é reduzido a seu estado natural. Um grupo ao redor de um líder, fêmeas tomadas como troféus, ataques e mortes primeiro, perguntas depois, fracos deixados para trás. Essa análise antropológica foi o que mais me surpreendeu no livro, pois tudo foi feito de forma tão crível, que em momento algum eu fiquei descrente com o que lia, pensando: "Ah, duvido que uma pessoa reagiria assim nessa situação" (como acontece, aliás, em quase todos os filmes/livros de ação/ficção científica). O autor, além de escrever de forma fluida e cativante, conhece muito da alma humana. E o tom bíblico tomado no final do livro, evocando civilizações da Idade Antiga, foi o toque especial que a história merecia.
Se olhei para o meu gramado e chorei? Eu me mataria se isso acontecesse? Não é possível prever como cada um de nós reagiria numa queda abrupta de nossa civilização. É inegável, porém, que me vi em cada um daqueles homens modernos transformados tão rapidamente em bárbaros.
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