spoiler visualizarStephane.Grizafis 03/04/2024
QUE LIVRO BOM
Esse é um livro que comecei a ler com muitas expectativas, considerando as resenhas muito positivas que vi. Ainda sim, Golding conseguiu superá-las
O livro tem uma premissa que a primeira vista parece simples, porém rapidamente essa impressão se dispersa à medida que o autor demonstra quais aspectos dentro desse contexto irá explorar; *crianças* perdidas em uma ilha que antes se detiam apenas à rotina da infância agora se veem sem o amparo e a experiência de um adulto, tendo que garantir por si mesmas a própria sobrevivência e cuidar dos mais vulneráveis, criando um micro sistema de comunidade, e com ele enfrentando problemas de construção e questionamento de poder, medo, além de conflito de interesses e também os âmbitos da maldade humana. Esse é um livro daqueles em que conseguimos traçar inúmeros paralelos com os dias atuais, não à toa é um clássico.
O livro nos mostra três grandes personalidades: Ralph, Jack e Porquinho. Esses três meninos são símbolos de grandes características que regem a sociedade; carisma, força e inteligência, respectivamente. Embora essas três características sejam muito promissoras quando combinadas, é preciso lembrar que são características que pertencem à crianças dentro dessa história. Ralph é um líder carismático, cativante, porém dentro de seus valores, prefere a ordem ao invés da força, e nem sempre tem o pensamento tão aguçado quanto Porquinho. Jack é forte e inspirador para os demais meninos, mas não é inteligente o suficiente para gerir um grupo e nem é tão carismático quanto Ralph. Porquinho, por sua vez, é muito sensato, mas completamente inseguro, não dispondo da força de Jack nem do carisma de Ralph. Isso é trazido à narrativa de maneira perfeitamente desenvolvida, afinal, essas forças irão conseguir se unir para a prosperidade do grupo enquanto o resgate não vêm ou serão engolidos por seus próprios egos, colocando a integridade do grupo e de si em risco?
A verdade é que a princípio tudo se desenrola praticamente bem, Ralph é ?eleito? o chefe e as crianças tentam aplicar pequenas regras para melhorar o convívio e participação: só podem falar quando tiverem a concha em mãos, irão construir abrigos, tomar banho, colher frutas, e fazer uma fogueira para terem luz e calor durante a noite, e fumaça durante o dia. O primeiro indício de conturbação se mostra quando as reuniões começam a acontecer e percebe-se que a opinião de um, muitas vezes, não equivale ao da maioria, e mesmo que ainda se valha da opinião da maioria, nesses momentos, Jack mostra sua insubordinação, que já é um prelúdio da rebelião que acontecerá futuramente. Não irei me ater muito à Porquinho, pois embora ele discorde de Ralph em alguns momentos, ou tente demonstrar sua insatisfação em não ser ouvido, não obtém sucesso em se estabelecer dentro do grupo, pois ninguém realmente o leva a sério. Quanto à Jack, temos muitas situações para citar, pois logo no primeiro momento fica muito claro a divergência de personalidades. Jack já é apresentado como uma figura de autoridade em sua primeira aparição, sendo seguido pelo seu ?coro?, dando ordens e colocando seus seguidores em marcha. Na primeira reunião, onde é decidido que Ralph seria o líder, embora Porquinho se ressinta por se considerar mais competente, entende que Ralph é alguém que impõe sua personalidade, ocupa espaço e cativa a atenção das pessoas, características necessárias para ser líder. Ao contrário, Jack é o único que protesta contra a liderança de Ralph e essa insatisfação só aumenta no decorrer do livro.
A partir daí, o livro apresenta muitas outras passagens que demonstram a disputa de poder entre Jack e Ralph; quando Ralph questiona a capacidade de Jack quando pergunta porquê o mesmo hesitou em matar o porco em sua primeira caçada, quando Jack interrompe os discursos de Ralph, quando ambos divergem entre querer caçar um porco e querer construir dormitórios, cada qual julgando que seu próprio anseio é mais importante, ou ainda quando Jack e seus subordinados deixam a fogueira apagar quando um navio passa e Jack dá um jeito de retornar a situação à si, deixando Ralph com a sensação de estar errado em repreender a irresponsabilidade de Jack. Além disso, Jack desafia Ralph abertamente em muitas situações, criticando seu posicionamento e suas decisões e se reafirmando por meio da violência. Isso, acompanhado das falas de Jack elevando sua imagem quanto à sua habilidade com a caça e sua força o mostram como um provedor, inspirando confiança e criando na memória dos demais uma imagem de um bom líder, que inevitavelmente será comparada à liderança de Ralph.
Em meio à essas disputas, Ralph precisou amadurecer forçadamente - tanto quanto sua tenra idade permitia. Chegou na ilha um menino arrogante, mimado, que só pensava em si mesmo e não aceitava as diferenças e precisou se tornar um menino responsável por um coletivo, tendo que fazer concessões, acordos ou votações para tentar unificar o grupo; com preocupações tanto quanto a integridade do coletivo quanto a sua própria imagem de "chefe", enquanto precisava reafirmar sua autoridade que era frequentemente desafiada pelos outros, principalmente Jack. Esse último, por sua vez, parece-me ter ido por outro caminho. Enquanto Ralph tentava manter a civilidade tanto quanto possível, Jack demonstrava certa inclinação à selvageria desde os primeiros capítulos(logo na pag 56 o livro narra que o mesmo "sente compulsão por perseguir e matar"), aspectos esses que só se intensificaram ao decorrer do livro, à medida em que é descrito os comportamentos de Jack cada vez mais questionáveis que vão se aproximando cada vez mais da insanidade.
O ponto é que Jack sabia articular suas vontades incitando seus seguidores à violência como forma de ?liberdade?(nem um pouco parecido com os dias atuais). Todos os meninos que caçavam junto com ele - que a princípio, iam somente para ajudar com o trabalho - começaram a realmente sentir prazer na matança. Comemoravam exultantes o sofrimento da presa morta e até faziam imitações satirizando o sofrimento do animal. Até mesmo criaram uma melodia e uma dança para realizar o ?ritual? de matança. Esses comportamentos denotam a banalização da violência e ainda mais, mostram a crescente *desumanização do outro*, algo determinante para o desfecho da história. Isso é demonstrado particularmente em uma cena da página 127, onde as crianças estão conversando sobre o ?ritual?; quando Roger diz que eles precisam de um porco para fazer o ritual, pois o porco eles poderiam matar, então Jack sugere ?usar? um dos meninos pequenos no lugar de um porco. Isso é falado em forma de piada por Jack e mesmo que essa ideia chegue a nós como um completo absurdo, para aquelas crianças com seu conceito de sociedade e regras distorcidas, não tem tinha tanta relevância.
Esse senso de superioridade cresceu ainda mais quando Jack decidiu desertar no momento em que foi descoberto o ?monstro? no alto da montanha e Ralph não quis enfrentá-lo, considerando que as forças das crianças eram insuficientes para derrotar tal inimigo. Jack, mais uma vez se apoia em sua força e coragem, e não aceitando a decisão de Ralph, decide continuar sozinho, porém é acompanhado por grande parte dos meninos maiores, que se inspiraram em suas características, e criam um novo grupo somente de ?caçadores?, cujo objetivo principal é matar e reafirmar sua predominância. Agora não havia mais a autoridade de Ralph e com isso, não havia mais regras; começaram a deliberadamente se comportar como selvagens. Se considerando uma ?tribo?, começaram a pintar os rostos, andar nus, se comunicando com urros e fazendo baderna. Com isso, vão se rompendo os invólucros da maldade que, até então, permaneciam fechados pelas formalidades de Ralph, criando-se um senso de liberdade que mais tarde irromperia em uma violência descabida. Essa violência crescente é perfeitamente descrita pelo autor, no momento particular em que criam a tribo, logo saem para caçar e acontece a cena que revirou meu estômago: as crianças encontram um grupo de porcos, mas escolhem o alvo mais vulnerável; uma porca que estava amamentando seus filhotes. Além de atacarem os leitões recém nascidos, logo se puseram em perseguição atrás da porca, porém, não só a mataram, como também a torturaram. Os meninos arremessaram a lança diversas vezes enquanto ela corria enlouquecidamente com as hastes presas ao corpo, e correram atrás dela ensanguentada até ela cansar. Quando a porca cansou e desabou, se lançaram em cima dela. Não a mataram com um golpe na cabeça ou degolando o pescoço com um corte limpo como é feito normalmente, mas a apunhalaram, esfaquearam, perfuraram diversas vezes enquanto a criatura se debatia em dor e desespero. A porca tem uma morte sem nenhuma dignidade, completamente aterrorizada pela crueldade daqueles garotos.(tudo isso é ainda pior quando você considera a narrativa primorosa do Golding que faz você sentir e ver tudo como um filme). O que fazem com ela depois de morta, cortando sua cabeça e enfiando em uma lança como oferenda ao ?monstro?, pra mim, é o símbolo que o autor criou para mostrar que naquele momento haviam perdido completamente seu senso moral e haviam se entregado à perversidade. Ironicamente, a cabeça é oferecida ao suposto monstro por medo dele, para que em troca da oferenda, o monstro não os faça nenhum mal, mas afinal, a maldade que tanto temiam estava neles mesmos.
Em contrapartida, Ralph e o restante se encontravam em desvantagem, considerando que ficaram sem carne, sem a ?força? dos caçadores e com todos os pequenos para cuidar. Além disso, Jack fez mais uma jogada de poder: a propaganda de que na ?tribo? dele caçariam, fariam banquetes e se divertiriam. Depois disso, todos foram debandando, até o momento em que sobraram somente Ralph e Porquinho, e por fim os dois também se renderam à suculência da carne em meio a tantas privações e à promessa de diversão, e foram ao banquete. Acredito que essa tenha sido a decisão mais incorreta de Ralph, pois a partir do momento que ele se juntou ao banquete, inverteu os papeis, agora estando em uma postura de submissão à Jack que detia os ?soldados?, a comida e a autoridade no novo grupo. E nesse momento, quando a autoridade de Ralph estava mais fragilizada, acontece o momento derradeiro do livro: dentro daquela noite opressiva, onde pairava no ar uma ameaça de violência, as crianças estão em uma roda, imitando mais uma vez a cena da morte do porco, onde os garotos empunhavam suas lanças e espetos e entoavam seu canto ?Mata o monstro! Corta a goela! Espalha o sangue!?. Aparentemente entraram em transe pelo ritual, pela dança, pelo canto, pela excitação em imaginar a caça, e nesse momento Simon entra na roda para os alertar sobre o homem morto na montanha, os meninos o ?confundem? com o monstro e matam ele com as lanças.
A partir desse momento, acredito que aconteceu mais um erro infeliz de Ralph, que não percebeu aquilo como um alerta e preferiu fingir que nada tinha acontecido e que tinha sido apenas um acidente. Assim, Ralph e Porquinho subiram à montanha novamente para tentar convencer o grupo de Jack sobre a importância da fogueira e pedir que devolvessem o óculos que foi roubado de Porquinho, mas aquilo não era mais um grupo de crianças tentando trabalhar juntas para garantir a sobrevivência, e sim uma ?tribo?que não se importava mais com valores morais. Jack mandou amarrar os outros dois meninos que os acompanhavam - Sam e Eric - e agora armavam um cerco ao redor dos dois como se não fossem dois meninos tentando conversar e sim uma ameaça ao ideal de sociedade que Jack havia construído. Parece-me que o simples vislumbre da possibilidade de alguém ameaçar a autoridade de Jack era inaceitável para ele, e quando um líder autoritarista é desafiado o que sempre acontece é um retaliação desproporcional, pois para esses, qualquer que pense diferente torna-se seu inimigo e precisa ser erradicado(novamente, nenhum pouco parecido com os dias atuais). A tensão tornou-se uma briga e culminou na morte de Porquinho, porém, dessa vez não tinha mais como fingir que era um acidente, Porquinho foi morto de propósito e agora Jack estava indo na direção de Ralph.
A partir daí se vê como líderes conseguem manipular a perspectiva dos seus seguidores e persuadi-los a acreditar no seu julgamento arbitrário, mesmo que não tenha nenhum fundamento. Jack mandou toda sua tribo atrás de Ralph, criando uma estratégia para caça-lo, encurralando-o como se fosse um animal. Nesse contexto, voltamos à questão sobre a desumanização do outro que foi citada anteriormente; Ralph não era mais visto como uma criança que conviveu, ajudou e liderou os meninos e sim como um animal perigoso, uma praga a ser exterminada.
Nesse momento, a perspectiva de Ralph é perfeitamente retratada, a ânsia, a tensão, a adrenalina de se sentir uma presa. Ralph precisa ficar escondido na mata pois toda a tribo está revirando a ilha para encontrá-lo, ou seja, ela não tem mais descanso mental ou físico, pois precisa procurar um bom esconderijo na mata e ficar acordado o máximo possível em vigia para atacar caso alguém o encontre, além do estresse mental de precisar ficar em alerta o tempo todo, ouvindo cada som enquanto tentava se esquecer dos seus machucados e da fome, das mortes que havia presenciado e o medo da sua morte que parecia tão próxima. E quando Ralph pensou que não havia mais como sua situação piorar, Jack e os outros, não tendo o achado, começaram a empurrar pedras gigantescas na susposta direção onde estava e depois ateando fogo à mata ao seu redor para tirá-lo do seu esconderijo. Poucas cenas me deixaram tão angustiada como essa. O autor descreve os cenários e os sentimentos de Ralph tão bem que toda a experiência se torna muito vívida; você vê o fogo se alastrando, o terror ao ver uma pedra gigante fazendo o solo tremer e vir em sua direção, o desespero de se sentir perseguido e a adrenalina da morte iminente que faz seu coração disparar ao ponto de seus ouvidos zumbirem.
No fim, o resgate chega no exato momento em que Ralph alcança a praia durante sua fuga, mas tudo isso me faz pensar o que teria acontecido se o resgate não tivesse chegado naquele momento. Se o navio tivesse chegado alguns minutos depois, tudo que teria encontrado seria um garoto destroçado cheio de lanças fincadas no corpo jogado na areia e um grupo de meninos comemorando. E se, na verdade, o resgate nunca tivesse chego? Como seria a liderança de Jack a longo prazo? Ele iria continuar mandando matar quem o desafiasse? Iria continuar batendo e machucando aqueles que não ?cooperassem?? E os pequenos, será que Jack elevaria seus níveis de tolerância à perversidade e passaria a usar as crianças menores para seu próprio divertimento, os humilhando ou fazendo-os fingirem serem porcos para o ritual como sugeriu uma vez?
Me pergunto a que ponto a insanidade e consciência de impunidade levariam Jack, e quais monstruosidades sua mente doentia imaginaria. No final. Porquinho estava certo em não temer fantasmas, e sim seres humanos.
Por fim, acredito que o autor foi genial em colocar elementos sobrenaturais em todo o livro. As crianças têm pesadelos, veem e sentem coisas inexplicáveis, porém o livro não nos deixa claro se realmente todos esses elementos seriam reais ou apenas alucinações que fazem parte do processo de perda de sanidade mental e autopreservação dos meninos, pois nenhum deles realmente chegou a ter alguma prova de que as miragens, sensações de perseguição, alterações do ambiente ou o próprio ?bicharoco? eram reais. Para mim, esses elementos servem muito mais à narrativa como um simbolismo do desespero e medo que os cercava a todo momento, e do adoecimento da mente deles.
Isso se mostra ainda mais cabível quando consideramos que as descrições dos elementos sobrenaturais crescem junto com a perda de civilidade ao longo do livro. Quando a cabeça da porca é colocada em uma estaca, isso acontece quando a primeira cena de crueldade é descrita, como se ali as crianças assinassem sua sina, de que ali estavam perdendo sua humanidade. A partir daí, é descrito o encontro de Simon com o ?Senhor das Moscas?(para mim, um símbolo claro da maldade dos próprios garotos), enquanto a tribo era consolidada é narrado a decomposição da cabeça, com as moscas enegrecendo o cadáver da porca, o que poderia simbolizar o colapso daquele microcosmo criado pelas crianças. Em outro momento mais ao final do livro, quando Ralph está fugindo dos meninos, acaba chegando à clareira e encontrado a mesma cabeça, porém agora restavam somente os ossos e o crânio ?parecia zombar dele com ar cínico?, como se simbolizasse a ruína daquela frágil e efêmera sociedade que haviam criado, que se distorceu asquerosamente até se desfazer.
Para mim, essa é uma obra completa. Embora eu ainda tenha ficado curiosa quanto ao que se passou na cabeça de Ralph enquanto era levado embora dividindo o mesmo espaço no navio com aqueles que, até então, estavam tentando o matar, achei o final excepcional, narrando o sentimento do Ralph sobre ?[...]o fim da inocência, as trevas do coração humano[...]?, algo que deveríamos refletir sobre todos nós, afinal, todos temos sombras dentro de si e a maldade humana está sempre à espreita.