Edson Silva 13/06/2020
"Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros"
As palavras não é uma autobiografia comum, no sentido de uma história linear dos acontecimentos mais importantes ou mais interessantes da vida de um autor segundo ele próprio. Sartre tem em vista um tema que conduz a sua narrativa, e ela se dá em volta desse ponto central, que se trata da sua relação com a literatura. Esse tema é o critério que Sartre usa ao dividir a obra em “Ler” e “Escrever”, dividindo sua vida entre o período de descoberta da leitura e as primeiras práticas na escrita. Tudo o mais aparece em segundo plano, como os detalhes sobre sua filosofia, sua vida política ou suas relações pessoais.
Sartre não esconde: o livro é um romance. Não se trata de uma questão de localiza-lo entre a ficção de um romance a realidade esperada de uma biografia, pois a linha divisória entre as duas quase desaparece se tratando de uma autobiografia. Seymour-Jones diz que as Memórias de Simone de Beauvoir são suas obras mais ficcionais, enquanto que em seus romances ela revela suas mais marcantes experiências.
Outras características do texto de Sartre são a ironia e autocrítica. Desde de o começo da obra quando Sartre apresenta sua “árvore genealógica” o faz de uma forma irônica. A relação de sua família com a política e a religião são as maiores vítimas de Sartre, mas nada supera o modo como Sartre trata a morte prematura do pai. O pai que soube morrer na hora certa, que morreu junto com a autoridade e o deixou com um complexo de Édipo desbalanceado.
Sartre parte dos aspectos de sua infância que acabaram por influenciar o adulto que se tornaria, uma espécie de psicanálise que, aqui também, é bastante irônica. Dentre eles, vale destacar as relações familiares com seu avô, que o criou, e com sua mãe. Por perder tão cedo a figura do pai, Sartre acabou muito apegado a mãe; e por perder muito cedo o marido, sua mãe teve que voltar para casa dos pais. Em consequência, Sartre é criado por um pai/avô do século XIX de duas gerações atrás e por uma mãe/irmã que é tratada como criança na mesma posição que ele, logo, deverá desposá-la quando crescer. A figura de sua mãe irá causar no pequeno Sartre uma necessidade eterna dessa figura feminina ambígua, e ao mesmo tempo um desprezo à figura masculina que a roubará, e desviará o olhar ao lembrar que também é homem.
Seu avô, Sartre denuncia, será aquele que anunciará o seu destino como escritor. Sartre não tem pai, não tem herança, não tem fortuna, não tem casa... e ao mesmo tempo tem uma vida condicionada pela classe burguesa. A consequência disso é que, não sendo pobre, não tem o impulso de sobrevivência daqueles que pretendem ganhar a vida, não sendo proprietário não reconhece nada como seu, inclusive seu lugar no mundo. Isso desperta no garoto o desejo de ser esperado e de ser necessário. Crescendo entre os livros e vendo os escritores como heróis, decide: será escritor.
Um escritor cuja obra tem seu lugar garantido na história, viveria para realizá-la, morreria ao terminá-la, nem antes nem depois. Era escolhido, por Deus ou qualquer coisa, mas não seria um gênio, as grandes obras não vêm daqueles que tem facilidade, precisaria de esforço, de superação, mas a obra era necessária, assim, com um só golpe, o jovem escritor conquistava a liberdade da contingência e garantia da necessidade.
A sentença final viria de seu avô: poderá ser escritor, mas a literatura não dá de comer, terá que ter um outro emprego, professor talvez. A fala desencorajadora de seu avô foi o que impulsionou Sartre, se tivesse dito que seria um novo Shakespeare, o resultado seria o oposto. O futuro estava garantido: perderia noites de sonos enchendo páginas para agradar seu avô. Mas faltava uma coisa, Sartre pensara em escrever para tudo, menos para uma coisa: ser lido. Que conteúdo seus livros teriam? Escrever para quem e contra quem? Os heróis do passado tinham vilões. Voltaire escrevera contra tiranos. Mas o que sobra para um republicano que tem a sorte de viver em uma república? A cultura, Sartre descobrirá, não salvará ninguém, mas é indispensável por que é o único espelho crítico do homem: o único que lhe oferecerá a própria imagem.