Betodepoa 10/05/2020
Cães da Província
Na audiência de instrução do processo que o declararia interdito por loucura, “Qorpo-Santo”, num repente de indignação, disse:
"Cães da Província, sim! [...] não admitem ninguém que lhes seja superior. A suprema alegria passa a ser esta, crucificar um homem que apenas deseja seguir seu destino [...] que tem desejos e imaginações a que ninguém se julga no direito, e reputam esses sonhos como algo obsceno. Na verdade, busco o que todos buscam, só que por meus caminhos."
Cães da Província (Luiz Antonio Assis Brasil, 1987) é um romance histórico ambientado na Porto Alegre do século XIX que “ficcionaliza” a vida de José Joaquim de Campos Leão, “sedizente” Qorpo-Santo.
A cidade -aparentemente pacata e ordeira, mas que esconde, sob o pano da hipocrisia, vários infanticídios, adultérios, estupros e outras maldades- é atormentada por uma série de intrigantes desaparecimentos no outono de 1864. Tais acontecimentos entraram para a história da Capital como os Crimes da Rua do Arvoredo (hoje, Rua Fernando Machado) e mexeram de forma dramática com o imaginário da população da época devido às suas circunstâncias bastante peculiares.
Naquele momento de quase histeria coletiva, a excentricidade de Qorpo Santo -hoje reconhecido por muitos como gênio e dramaturgo visionário- ultrajava a sociedade porto-alegrense:
"[...] doutor Landell não dissocia a onda de homicídios do caso particular da interdição. Tudo faz parte de uma loucura geral que precisa ser aplacada [...]. Porque já estão fazendo comparações, misturando tudo, querem também a interdição de Qorpo-Santo [...]. Mas sabem com são as coisas, tudo se espalha, tudo se transforma, o povo não sabe mais nem pensar."
Após as primeiras sessenta páginas, o livro ganha bom ritmo, as estórias se entrelaçam e o debate entre os dois “alienistas” responsáveis pelo laudo pericial sobre a sanidade de Qorpo-Santo evolui de forma primorosa expondo o conflito entre duas correntes de pensamento.
Neurologista ortodoxo, doutor Landell via em Qorpo-Santo um comportamento meramente patológico decorrente de anomalias químicas ou anatômicas. Doutor Joaquim Pedro, ao contrário, percebia um homem brilhante, incompreendido e, por isso, condenado a uma espécie de ostracismo. Achava que Qorpo-Santo sofria de problemas emocionais na essência, decorrentes de desajustes éticos, morais e até culturais.
Concluí o livro com a certeza de que, noutras circunstâncias, a história de Qorpo-Santo ganharia ao menos as cores alegres de um “causo” pitoresco do folclore porto-alegrense e, consequentemente, um desfecho menos cruel.
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