Flávia Menezes 11/01/2023
NÃO VÁ À ÓPERA SE VOCÊ SÓ OUVE ROCK!
O manuscrito de ?O Amor de Mítia?, do primeiro escritor russo a receber o Prêmio Nobel de Literatura, Ivan Alekseyevich Bunin, é datado de 14 de setembro de 1924, porém, a novela só veio mesmo a público pela primeira vez na revista ?Sovremênnie Zapíski? (Anais Contemporâneos), vols. XXIII e XXIV, em 1925.
Admirado por escritores renomados como Thomas Mann, Vladímir Nabókov, André Gide entre outros, e com sua narrativa exemplar escrita em prosa e poesia, Búnin nos faz penetrar na mente de um jovem atormentado pela poderosa experiência do primeiro amor com uma intensidade tão tangível que é possível sentir em cada uma das suas palavras a força do desejo e paixão que Mítia sente pelo seu objeto amado, a jovem Katia.
Para lermos essa obra-prima, é importante compreender que o universo artístico de Búnin abandona o ser antropocêntrico que, pequeno e frágil, deixa de ser o centro do universo para ser apenas uma partícula perdida na imensidão da natureza, nessa eternidade do cosmos. Sendo assim, o que veremos aqui é que a paisagem passa a ocupar o lugar de protagonista, pintada com uma multiplicidade de detalhes bem concretos, e pincelada de cores vivas e expressivas, revelando sua força e absoluta independência da natureza humana.
Como o autor tem essa grande queda pelos extremos, nessa história conseguimos sentir esse clima de alta tensão que perpassa pelas polaridades da alma humana: a intensidade da paixão e a dor da separação, o passado e o presente, o amor e a morte.
A riqueza dessa narrativa tão poética, combinada com a forma como o autor vai tecendo de forma bastante dramática todo o sofrimento que Mítia experimenta ao viver o seu primeiro amor, com todo o seu ciúmes, seus medos e anseios provocados pela necessidade de uma separação tão prematura, quando a paixão ainda está em seu auge, e o desejo por desfrutar da presença do objeto amado é quase que uma necessidade, por mais intensa que seja, preciso advertir que pode ser algo que não irá agradar a todos os gostos.
Inclusive, algumas resenhas que eu vi por aqui, chegam a criticar a escrita dos autor, dizendo que essa forma de descrever a natureza é exagerada, e de que os sentimentos de Mítia não são tão interessantes, não tendo a obra acrescentado muito. Confesso que não sei se fico surpresa ou chocada com essa colocações. E veja bem, não é por não respeitar o gosto de cada um, mas porque a obra vem de um conceito diferente do que percebo ter sido a expectativa desses leitores. Afinal, se uma obra tem por foco explorar a natureza, como sua protagonista, abandonando o antropocentrismo, como podemos esperar que ele não fizesse descrições da natureza? É altamente contraditório.
Para ser sincera, é por esse motivo que cada vez mais, quando inicio uma nova leitura, especialmente de uma obra mais clássica, muitas vezes eu paro um pouco para pesquisar mais sobre a história ou sobre o autor. E isso me ajuda muito a compreender o cenário da época em que ela foi escrita, exatamente para não esperar algo que está totalmente fora do seu contexto.
Compreendo que cada um tenha um gosto, mas eu realmente preciso dizer: Não vá à opera, se o único gênero musical que você ouve é o rock! Pois se o fizer, certamente você perderá a oportunidade de experimentar toda a profundidade e beleza dessa arte que está se abrindo tão vivamente diante dos seus olhos.
E Búnin é essa beleza singela de palavras escritas com uma suavidade e paixão, que chega a ter musicalidade enquanto nossos olhos vão percorrendo cada frase. Eu confesso que fiquei encantada a ponto de ter lido essa novela de uma única vez, porque eu simplesmente não queria mais largar esse livro. Meu nível de conexão com a escrita de Búnin foi altíssima, e eu inclusive fui transportada para a minha adolescência, época em que eu tinha grande paixão por ler obras escritas assim, em prosa e poesia. E preciso dizer, as sensações que Búnin vai despertando com a sua escrita é tão poderosa, quanto a força da história que ele conta.
Escolhi essa leitura porque, assim como em ?A Besta Humana?, minha primeira leitura finalizada em 2023 (e que leitura!), essa trama também se debruça na temática do amor, do ciúmes, e da traição, e preciso confessar que também por ter sido uma oportunidade perfeita para ter o meu primeiro contato com a obra escrita por um autor russo. E que grata surpresa eu tive!
Assim como em ?Otelo?, do poeta, ator e dramaturgo inglês William Shakespeare, essa novela nos faz refletir sobre o ciúmes incompreensível que arrebata o jovem Mítia, e o faz mergulhar em suas fantasias de que, estando longe da sua amada, logo ele será substituído por outro, e isso o vai torturando a ponto de fazê-lo chegar a perder um peso considerável, além da vontade de manter acesa a chama da vida que existe dentro dele.
Alguns personagens vão aparecendo na história, e interagindo com Mítia, provocando-lhe sensações e sentimentos, que o ajudam a perceber que sua juventude e boa condição de vida não podiam ser desperdiçados. E tudo isso o autor faz através da poesia, o que torna ainda mais intenso e bonita a forma como as cenas vão se dando sem nada explícito, e como mesmo assim, as sentimos com a mesma intensidade que sentiríamos se fossem contadas com riqueza de detalhes.
O final é simplesmente arrebatador, e para mim foi feito com um nível de perfeição que nada tenho a dizer a não ser que os escritores do passado sabiam muito bem como colocar a sua intensidade sem medo de parecer piègas ou exagerados.
Essa é uma novela belíssima, com uma escrita impecável, singela, que me conquistou de uma forma não apenas sensorial, mas que me transportou para outro momento da minha vida, e me fez reviver uma época já distante, mas na qual a pureza dos sentimentos ainda era possível de ser experenciada sem as sombras que a maturidade nos traz.
Búnin é um mestre, um poeta, e se você quer se abrir a uma possibilidade nova de viver uma obra através do sensorial muito mais do que pelo seu enredo, sem dúvida esse é o escritor perfeito para experimentar algo assim.