Marc 28/07/2023
Já nem lembro quando li esse livro. E não gostei. Eu havia lido Massa e Poder, um livro tão impressionante, que assim que descobri esse na prateleira, comprei na hora. Mas durante a leitura, o achei mediano, com uma história que me parecia feita para chocar e que caia no completo nonsense. Acho que passei longos meses, se não me engano, deixando o livro encostado ou lendo poucas páginas a cada vez. O personagem principal me irritava, os outros igualmente, e nada me prendia ao livro. Acontece que às vezes é preciso que algo envelheça em nós, ou que as circunstâncias da vida se transformem para que um livro comece a fazer sentido.
A história fala sobre um eminente intelectual que leva uma vida muito regrada e com hábitos e horários definidos. Ele se dedica a seus livros e escreve artigos, é respeitado em sua área de atuação e não precisa de nada mais que isso para viver (cheguei a pensar que o personagem era. inspirado em Kant, por causa das histórias de que ele era tão cuidadoso com horários que os moradores da cidade acertavam seus relógios por ele). Mas acaba se casando, descobrindo novos interesses a partir da convivência com sua governanta, e modificando seu modo de vida radicalmente. A partir daí, num verdadeiro mergulho ao inferno, ele jamais vai recuperar sua antiga vida e tudo termina, como o título faz adivinhar, num auto de fé. O grotesco de várias situações, que não me lembro em detalhes mais, reforça a sensação de que o livro trata da psicologia de um intelectual, mas só um mero dado histórico já é capaz de mudar nossa interpretação: o nazismo havia feito seu famoso auto de fé contra tudo o que considerava subversivo ou degenerado em 1933 — o livro é de 1935.
Qual a mensagem que Canetti está passando aqui? O personagem principal é um grande intelectual, talvez o maior, assim como a Alemanha era o país mais desenvolvido intelectualmente na época, com grandes artistas e intelectuais, mas que não é capaz de resistir à força de uma pessoa mesquinha, que despreza tudo isso e só se interessa pela vida mais material, pelo prestígio, por coisas banais. Therese representa a liderança que ascende naquele período, uma figura patética, desprovida de qualquer qualidade superior, mas que muitos juram ter um certo encanto, carisma, “senso prático’. O que o livro registra é que o momento trazia o grotesco, uma trupe de seres autoritários, mesquinhos, ridículos e como eles vão conquistando espaço na vida do país (na vida do personagem principal), a ponto de arrastá-lo até ao mal absoluto, à loucura.
A sensibilidade de Canetti foi capaz de captar, ainda no começo do período nazista, porque é a degeneração da sociedade mais avançada da época que permitiu a existência de uma ditadura tão terrível. Mesmo o personagem principal, um erudito que pode escapar da análise, mas que significa a renúncia à vida concreta, se tornando incapaz de reconhecer as mudanças e o período que se iniciava, uma pessoa que passa a viver de forma idealizada e não consegue lidar com a situação, literalmente enlouquecendo. O livro é uma alegoria do período anterior ao nazismo e de seus primeiros anos. Mas essa interpretação não quer dar um veredito definitivo, porque o sentido do livro era ser um alerta, mostrar o quanto aquela sociedade que parecia segura e que pretendia se reerguer, voltar a ser a Alemanha que todos queriam, na verdade, estava doente, como nunca antes, tanto que o grotesco foi considerado padrão e assumiu o controle, com todo seu ressentimento contra a vida de valores.
Victor Klemperer dá um testemunho muito próximo do que foi aquele período. Ele, estudioso da linguagem, afirma em seu importante livro (LTI – A Linguagem do Terceiro Reich) que era preciso registrar a modificação do sentido das palavras, o que gerava novos padrões emocionais, de pensamento, etc. A Alemanha estava pronta para o nazismo antes mesmo que ele subisse ao poder, pois enquanto o povo se acreditava culto, era possível vislumbrar a loucura grassando por todos os cantos. E como a retórica de recuperar o lugar de direito do país no mundo, assim como a justificativa contra os inimigos (no caso alemão, os judeus, além de serem culpados pela crise do país e da cultura, ainda foram responsabilizados por um surto de tifo) foi penetrando lentamente a sociedade até o ponto em que se tornou arriscado tentar discutir qualquer ponto daquilo que o regime afirmava.
No livro de Canetti, Therese inicia uma investida contra Peter Kien, sempre o retirando daquilo que lhe era importante. Ele não percebe e vai cedendo ponto por ponto, abandonando tudo, se deixando dominar e moldar. É dessa forma que o regime tirano opera, na realidade: modificando tudo lentamente, criando novas expressões para aquilo que pretende, iludindo e se tornando cada vez mais poderoso, levando as pessoas (que tem a culpa de não terem conseguido compreender o que ele pretendia) à completa subversão de si mesmas, chegando ao ponto da inversão de seus valores. A tirania, como Canetti mostrou soberbamente nesse livro é, muito mais do que um regime de violência aberta (embora também o seja), uma transformação da alma, a tentativa de criação de novos seres humanos que terminam, no entanto, se tornando cópias do grotesco que foi apresentado no começo como normalidade, daqueles que, em nome dos direitos mais humanitários possíveis, exigiam participar da vida comunitária — esses cuja deformidade das almas é sentida por alguns poucos. A tirania é um mergulho no inferno que pretende arrastar todos com ela.