Marc 18/12/2012
Um fato incontornável
Um dos textos mais influentes de toda a história. Freud viveu um período extremamente conturbado e, como se não bastasse, ainda tentava fundar uma nova ciência, separá-la no campo do saber, em especial da medicina psiquiátrica, que via a correspondência entre certos estados da consciência e a produção de determinadas substâncias e processos pelo corpo. Trata-se de uma grande extrapolação da psicanálise, uma tentativa de responder a questões que eram pungentes na época, como as guerras e toda a miséria e violência que tomava conta do mundo civilizado. A sociedade é uma grande realização do homem, mas lhe toma muito mais energia e faz com que suspenda satisfações instintuais que lhe são muito caras.
Os homens enfrentam uma curiosa necessidade de se unirem em sociedade, mas para isso renunciam às satisfações instintuais. Mas deve-se lembrar que se, por um lado é o aspecto biológico que faz com que os homens se unam (proteção contra a natureza, maior facilidade de encontrar alimento e parceiros sexuais), é essa mesma civilização que o faz sofrer por não poder satisfazer suas necessidades básicas. Mas Freud sempre trabalha com as duas coisas ao mesmo tempo. O homem não é natureza até certo ponto e depois cultura, dali em diante. Natureza e cultura sempre aparecem como fazendo parte do mesmo todo, os homens. Isso quer dizer que Freud tinha plena consciência de que o campo psicológico ultrapassava em muito o determinismo biológico. Falar em natureza é um equívoco, porque os dados naturais são elaborados ao mesmo tempo em que acontecem por todo o aparato psicológico
O mal-estar é provocado pela necessária renúncia aos instintos em nome da sociedade. A lei (ou seja, aquilo que impede a realização dos instintos, entre eles o desejo pela mãe), primeiro representada pelo pai que mostra que a mãe do menino é interditada para ele e depois introjectada pela criança e que vai se tornar o super-eu, é a grande fonte de infelicidade. Esse mecanismo aparece bem explicado no texto, mas de modo geral, o raciocínio é esse. Mas a civilização é uma grande conquista da humanidade, e essa angústia (que é a manifestação do desejo não realizado e que ainda sobrevive, tentando se realizar) acompanha a todos porque aquilo que precisamos renunciar é sentido como maior do que aquilo que recebemos em troca.
Não à toa, alguns psicanalistas seguem esse caminho para tentar explicar a origem de tamanha violência em nossa sociedade. Para eles, ao renunciar à mãe o indivíduo faz um pacto com a sociedade, o pacto edipiano, para receber mais tarde uma parcela das conquistas dessa sociedade e ter direito a uma mulher. No caso de países como o Brasil, onde a miséria é grande e opressiva, fica claro desde a juventude que o sujeito não vai receber sua parcela por contribuir; assim, de maneira inconsciente se volta contra ela e dá livre vazão a seus impulsos violentos, a sua pulsão de morte. Freud abriu,com esse texto, uma longa tradição de estudos sobre a violência, suas causas e possíveis “tratamentos”. Dificilmente se pode exagerar a importância desse texto, pois ele nos coloca diante de uma delicada equação: aquilo que mais prezamos e nos orgulhamos, os bens culturais, são, na verdade, uma conquista frágil diante do vigor da violência que carregamos dentro de nós. E há pouco a ser feito nesse sentido, pois cada um de nós sofre os efeitos dessa ininterrupta batalha, vacilando por alguns momentos.
Mas para nós hoje, o que Freud pode ainda dizer? Em uma sociedade que avançou em conquistar prêmios de satisfação, onde o trabalho (grande fonte de desprazer) vai se tornando cada vez mais livre das imposições rigorosas e a velocidade das relações nos impedem de sentir por muito tempo as perdas que sofremos, fica até difícil acreditar que Freud possa ter alguma razão. Mas a atualidade desse texto sempre pode ser percebida pela própria maneira que o autor buscou trabalhar o tema: era necessário primeiro mostrar que o homem era mais que um mero animal, que as questões que enfrenta atravessam o campo biológico e ganham uma dimensão inédita para outros animais, que existe o simbólico. Ou seja, ao mostrar que havia algo mais, que nossa estrutura psíquica cria toda uma realidade que se confunde com a mera realidade objetiva, e que nós reagimos a realidade construída e não ao mundo dado, Freud foi muito longe. Basta pensar na equação inicial de formação do indivíduo para perceber isso, afinal se cada um de nós deseja em primeiro lugar a mãe (e gosto de discutir até que ponto essa limitação do universo infantil que Freud imaginou é verdadeira, mas aqui não vamos entrar nesse ponto) e se defronta com a figura do pai, austera, que vai nos interditar de maneira inexplicável esse objeto primeiro, gerando uma série de explicações as mais elaboradas, é impressionante que algo tão banal possa ser a base de nossas maiores conquistas sociais.