fabio.ribas.7 17/04/2020
O outro evangelho de Ayn Rand
Durante toda a leitura do livro de Jeffrey Tucker, autor de “Coletivismo de direita”, eu pensava em Ayn Rand. Pensava em como o libertarianismo dos dois era tão diferente um do outro não apenas no aspecto do capítulo de Tucker sobre o “Q.I.” (teste de inteligência), mas, fundamentalmente, no quesito do “culto ao herói”. E é muito interessante que no “culto ao herói”, que Tucker tanto execra, esteja uma das chaves para se compreender o pensamento de Ayn Rand e também o seu livro “A revolta de Atlas”.
Na verdade, enquanto eu lia os 3 volumes do romance de Rand, muita coisa passava pela minha mente, e uma das mais insistentes era a pergunta: “Por que o livro de Ayn Rand não conseguiu deter o movimento da Nova Era nos Estados Unidos?”. Depois da Bíblia, “A revolta de Atlas” foi considerado o livro mais influente dos Estados Unidos, segundo a Biblioteca do Congresso Americano. E ele foi lançado em 1957! Eu até entendo que a Bíblia, numa interpretação ecopagã, pudesse ser usada pelo movimento da Nova Era em favor de suas causas e bandeiras, mas, sinceramente, “A revolta de Atlas” é um antídoto implacável contra todo misticismo que originou e deu força aos movimentos sociais ecoesquerdistas dos anos 60. Assim, como que o segundo livro que mais influenciou a sociedade americana não conseguiu deter o desastre do misticismo neopagão, que trouxe tantas mazelas e tristezas ao mundo Ocidental sob o disfarce do “paz e amor”? Por isso, eu indago: influenciou a quem?
Eu teria um milhão de coisas a dizer sobre o livro, coisas que me fascinaram e me instigaram, mas seria uma resenha de um milhão de páginas ou, até mesmo, daria em outro livro. Portanto, irei me ater a 3 pontos específicos: dois positivos e um negativo, a saber, sexo, cristianismo e sacrifício. Na verdade, todos esses 3 pontos estão entrelaçados.
Ayn Rand e o sexo.
Antes de tudo, duas coisas: 1) Rand não faz descrições pornográficas em seu livro; 2) sei que me exponho a pedradas dos libertários de plantão com o comentário a seguir, mas já me acostumei a apanhar… Eita! Esse comentário não pegou nada bem com aquilo que vou dizer a seguir: no primeiro volume da trilogia, saltou-me aos olhos que todas as descrições e pensamentos sexuais da personagem principal — Dagny — são feitos sob uma forte dose de subserviência ao sexo oposto. Todos os pensamentos sexuais da libertária heroína da história de Ayn Rand a colocam num papel de dominada e com tons (não cinquenta!) de masoquismo! Ela apanha e gosta, ela sempre se imagina servil sexualmente. Mas não é só ela! Outra personagem feminina — a Lílian — também se imagina acorrentada e sexualmente dominada. Surpreendente é ver uma filósofa libertária colocar suas personagens femininas totalmente desejosas de homens que as controlem, dominem e subjuguem na cama, enquanto elas assumem posição de comando à frente de empresas e nas demais áreas da vida pública. O que me faz lembrar outro filósofo libertário, à esquerda: Michel Foucault. Este é outro que com sua filosofia quis romper com os grilhões do sistema que, dizia ele, dominavam e oprimiam a sociedade, mas frequentava clubes de sadomasoquismo e satisfazia-se apanhando de outros homens.
Ao fim do segundo volume, eu já havia compreendido a razão de Rand e de suas personagens. E o meu entendimento é uma moeda de dois lados: de um, estou mergulhado num tempo saturado de mulheres obcecadas e atravessadas por ideias feministas, mulheres que se colocaram no extremo oposto do ringue contra tudo aquilo que se chama homem; do outro lado da moeda, está Rand, antes de todos os manifestos e propagandas que, nos anos 60, propagaram pela sociedade Ocidental as teses feministas. Ayn Randt é uma filósofa cuja metafísica é o mundo real, objetivo, tangível e que não separa o corpo da alma. Desta feita, ela admira o homem (no caso, o homem ideal é encarnado por John Galt), o homem que não tem vergonha de ser homem, de ser inteligente, de ser conquistador, dominador e grande empreendedor. A esse homem, Rand se entrega e se deixa sentir no próprio corpo aquilo que ela admira nas virtudes do homem capitalista, cuja moral é a de amar a si mesmo e defender as próprias ideias contra um mundo hipócrita e coletivista!
Resumindo, o meu estranhamento foi diante de uma mulher que gosta de homem, gosta de verdade, deseja mesmo! Não consigo ver isso na maioria das mulheres hoje em dia. Mulheres cheias de “não me toques”, mimimi, muito interessadas em si mesmas e nos seus espelhos de maquiagem ou nas suas lutas de gênero e de semântica. Já no fim do segundo volume da trilogia de Rand, portanto, eu percebi que o meu estranhamento, a minha perplexidade, foi notar que as mulheres mudaram. Ainda que eu não concorde com o prisma de Rand e nem com a aplicação prática de sua filosofia ao universo feminino, ler um texto que de modo algum é pornográfico, mas que derrama admiração feminina por um homem, um texto que extravasa desejo erótico pelas virtudes masculinas, é uma delícia inusitada. Acho que nunca li algo parecido. E tudo isso se deve ao “culto ao herói”, defendido por Rand. Algo que inexiste em boa parte das mulheres nos tempos de hoje também. Rand expressa essa admiração. Ela se apresenta como uma mulher que gosta de homem e não o vê como seu oponente. Faço questão de deixar um texto abaixo para que você tenha uma ideia aproximada do pensamento de Rand sobre o “culto ao herói” (esta passagem não é do livro em questão):
“Para uma mulher enquanto mulher, a essência da feminilidade é o culto ao herói — o desejo de reverenciar o homem. ‘Reverenciar’ não significa dependência, obediência ou qualquer coisa que implique inferioridade. Significa um tipo intenso de admiração; e admiração é uma emoção que só pode ser experimentada por uma pessoa de caráter forte e juízos de valor independentes. Um tipo dependente de mulher não é uma admiradora, mas uma exploradora de homens. O culto ao herói é uma virtude exigente: a mulher tem que ser digna disso e do herói que ela cultua. Intelectualmente e moralmente, isto é, enquanto um ser humano, ela tem que ser sua igual; assim, o objeto do seu culto é especificamente a masculinidade dele, não uma virtude humana que possa faltar a ela.
“Isso não significa que uma mulher feminina sinta ou projete o culto ao herói para qualquer e todo homem individual; enquanto seres humanos, muitos deles podem, de fato, ser inferiores a ela. O seu culto é uma emoção abstrata ao conceito metafísico de masculinidade enquanto tal — a qual ela experimenta completamente e concretamente apenas com o homem que ela ama, mas que colore a sua atitude em direção a todos os homens. Isso não significa que há uma intenção romântica ou sexual na atitude dela para com todos os homens; muito pelo contrário: quanto maior a sua visão da masculinidade, mais severamente exigente serão os seus padrões. Isso significa que ela nunca perde a consciência da sua verdadeira identidade sexual e da identidade sexual deles. Significa que uma mulher adequadamente feminina não trata os homens como se ela fosse sua camarada, irmã, mãe — ou líder.”
Ayn Rand e a manipulação do cristianismo.
O segundo tema que me tomou a atenção durante a leitura do livro foi o do misticismo, da religião, da fé, qualquer que seja ela, usados para manipular o indivíduo contra si mesmo. O que, inevitavelmente, nos faz pensar em Karl Marx, ainda que Rand seja uma filósofa do capitalismo, pois a tese dela ecoa aquela de que a religião é o ópio do povo. Compreendo Rand como uma “neoiluminista”, porque a base de toda sua filosofia está na razão. O homem é um animal diferenciado dos demais por causa da razão e, dessa maneira, ele em nada difere de outros animais se não usa sua razão, não pensa por si mesmo, não defende seus valores individuais e objetivos contra os canibais do coletivismo e contra os dogmas esquerdistas ou irracionais. Neste ponto, assim como também é para Tucker, qualquer expressão de fé é um irracionalismo. E especialmente o cristianismo é um sistema para o controle e manipulação da sociedade. Por que isso me chamou a atenção? Porque isso não deixa de ser verdade. Explico-me. Nestes tantos anos de caminhada cristã, vi o cristianismo ser usado por grupos, igrejas, instituições e governos para o controle de indivíduos e minorias. Um exemplo mais propício são frases como “não toque no ungido de Deus”, “você não pode questionar o seu pastor”, “você tem que instaurar o paraíso na terra por meio da revolução”, “justiça social”, “reforma do sistema”, “a igreja primitiva era socialista”, “redenção da cultura” são exemplos de ênfases usadas para manipular a tantos desavisados. Isso é um fato! Eu vi isso! Eu já vi muitas coisas. Muitas coisas que não poderia ter visto. Muitas coisas que não gostaria de ter visto. O cristianismo usado para anular e massacrar o indivíduo para que uma elite, uma instituição, um corporativismo, uma aristocracia, enfim, um grupo permaneça com suas garantias sobre outros. Infelizmente, ao contrário do que eu pensava há anos atrás, conheci muitos que estão brincando nos campos do Senhor. “Forças ocultas” que aproveitam de ideias muito próprias do cristianismo para controlar a vida dos indivíduos e usar a massa como instrumento para combates ideológicos. Vi igrejas e denominações cristãs serem usadas para ajuntamentos revolucionários sob a desculpa do Evangelho e da tão propalada “justiça social”. Nisso, então, Rand está certa. Ela está falando do que a própria história testemunha.
Rand e o sacrifício.
E o que disse no parágrafo anterior está relacionado ao dogma central do Evangelho: o sacrifício de Cristo na Cruz! E é a partir dessa reflexão que Rand quer nos incomodar. Para a filósofa, a religião do sacrifício — tanto o esquerdismo como o cristianismo — exige que seus súditos se sacrifiquem pelo próximo, entregando no altar o que há de melhor (a razão) em benefício da sobrevivência dos mais fracos, dos preguiçosos, dos canibais. Nesse altar morre o que temos de melhor: a criatividade, a arte, a vida inteligente. Assim, os produtivos são sacrificados para que as sanguessugas sobrevivam. O discurso é duro. Mas é um fato.
O socialismo exige o sacrifício do indivíduo em nome da redistribuição da riqueza para a massa. O cristianismo exige o sacrifício do lucro aqui em nome de uma vida melhor após a morte. E ambos trabalham com a culpa. Esta é utilizada pela Igreja e pelo Estado para controlar cada vez mais a vida das pessoas. Neste ponto, devemos nos perguntar se é assim mesmo? Que o socialismo é uma religião não há dúvida, por isso Rand consegue tratar ambos — cristianismo e socialismo — tão aproximadamente. Contudo, se o socialismo consegue o controle e o domínio das mentes mediante a culpa, o cristianismo deveria quebrar esse ciclo da culpa em nome da liberdade conquistada por Cristo mediante a fé. Não deveria existir a culpa, a dívida e o encarceramento das consciências no cristianismo, mas há. Por quê? Não há como retirar o “sacrifício” do cristianismo, pois esse é o dogma fundamental — Jesus morreu em nosso lugar! E isso, que é o que deveria nos fazer livres da culpa do pecado contra Deus e contra o nosso próximo, é usado exatamente para nos encarcerar novamente e é a esse cristianismo, a esse outro evangelho, que Paulo grita: “Ó insensatos gálatas! Que vos enfeitiçou?”. O que fizemos do Evangelho? Por que as pessoas se sentem cada vez mais presas, em dívida, culpadas e injustas dentro de nossas igrejas? Só há uma saída ao cristianismo: entender que não há mais espaço para sacrifícios, não há mais espaço para “novas circuncisões”! O Evangelho da graça é a única resposta a esse cristianismo usado, explorado, corrompido desde sua essência. “Não há mais sacrifícios”! Só o amor! Eu não “tenho que”, mas sou convidado pela Graça de um Pai misericordioso. E o amor não é uma abstração, uma ideia, uma causa social, mas é o próprio Jesus das Escrituras! Aqui, exatamente nesse ponto de tensão, Thimoty Keller (ver “Justiça generosa”) e o Evangelho social que solapou e ainda persiste nas veredas latino-americanas estão tão próximos de Rand, pois, indubitavelmente, a mentalidade revolucionária encontra-se tanto à esquerda quanto à direita do espectro político e filosófico. E Rand também a possui. Por isso, por mais que haja pontos de contato entre o cristianismo e Ayn Rand, não há entre Jesus e Atlas.
Quem é John Galt? Um anticristo.
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