spoiler visualizarRonaldo Thomé 12/01/2022
"(...) In the cage/Get me out of the cage(...)"
Nossa! Belíssimo início de leituras de 2022!
O autor Campos de Carvalho nos oferece aqui um clássico muito distinto, que na época causou estranhamente e algum escândalo (e, talvez, hoje não fosse ainda tão diferente). Através da narrativa em primeira pessoa, e unindo fragmentos que parecem alineares e desconexos, ele conta a história de Astrogildo, um personagem que narra a sua vida enquanto hospedado num hotel.
Desde o primeiro parágrafo, você percebe que alguma coisa está errada. Os fatos narrados por Astrogildo são tão insólitos e absurdos que causam um desnorteamento (e muito riso, às vezes pelo efeito cômico, outras de nervoso). Em quantos outros livros lemos sobre um homem que matou um professor de lógica, foi morar sobre uma ponte, foi mendigo e deputado, rodou o mundo, saiu da cadeia em meio a uma revolução...?
Logo descobrimos que o tal hotel não pode ser senão um manicômio, onde todos usam branco e mantém os "hóspedes" constantemente sedados; o narrador passa a chamar o lugar de "campo de concentração". Apesar do tom debochado e satírico, o autor consegue algo incrível: muita criticidade ao explorar acontecimentos chocantes, como as frequentes terapias com eletrochoque e maus tratos a pacientes. É sem dúvida uma obra que leva você do riso ao choro, da revolta à redenção, muitas vezes em poucos parágrafos.
O fato de se valer de um personagem louco em primeira pessoa acaba dando muita liberdade ao autor, que faz constantes críticas ao Estado, ao capitalismo, à violência em voga (o livro é dos anos 50, muito à frente de seu tempo); as situações insólitas, além de nos chocarem, têm o grande mérito de nos levar a refletir.
E este é só o início da história. A obra em grande parte lembra Gógol, mas de uma forma diferente. O insólito do escritor russo é mais satírico, enquanto o brasileiro varia o tom com mais frequência (talvez por o primeiro ser um autor mais conhecido pelos seus contos). Mas independente disso, é fato que ambos são capazes de tocar o coração e o sentimento de quem os lê. Astrogildo é insano, mas profundamente crível; ora delicado, ora ignorante, capaz de coisas bárbaras, é também reflexivo e sensível. Quase como qualquer um de nós - essa identificação é essencial para apreciar a obra.
Enfim, mais um grande livro. Ainda bem que esse grande escritor foi redescoberto.
Indicado para: quem deseja ler uma obra totalmente diferente de tudo, que oscila entre o real e o imaginário, sem que você saiba para qual lado irá pender, e capaz de levar você da euforia à lágrima - às vezes na mesma página.
Nota: 10,0 de 10.
Dica: leia ouvindo isto - https://youtu.be/5wrP6bjwY44