Ramiro Catelan 24/02/2011
Um livro que vai incomodar muita gente
O escritor britânico Philip Pullman, ateu militante e alvo constante de ataques por parte de fundamentalistas religiosos, fomenta ainda mais a repercussão em torno de suas polêmicas ideias com O bom Jesus e o infame Cristo, lançado este ano no Brasil pela Companhia das Letras. Autor da trilogia Fronteiras do universo, na qual tece críticas ao cristianismo e levanta dúvidas sobre a força da fé e a existência de deus, agora resolve deturpar o alicerce maior da mitologia cristã e recontar, em suas 184 páginas, a história do nascimento de Cristo.
Aqui, Maria dá à luz dois gêmeos Jesus e Cristo. Um, como descrito, forte e saudável, e o outro, pequeno, fraco e de aspecto doentio. E as distinções e dessemelhanças entre os dois irmãos se mostram evidentes ao longo da história. Jesus, extrovertido, travesso e querido pelas outras crianças, entra em contraste com Cristo, um menino reservado, avesso, que captura para si a preferência e proteção da mãe.
Observamos a ascensão de Jesus, que, após uma peregrinação solitária no deserto, se propõe a pregar a palavra de deus, enquanto Cristo, sempre à sombra do irmão, dispõe-se a observar os discursos do irmão e fazer anotações de seus feitos. E é a partir desse fato que Pullman engendra a tese principal do livro. Com o passar do tempo, orientado por um misterioso desconhecido, Cristo passa a aumentar, manipular e às vezes inventar os fatos referentes a Jesus, que a cada dia expande sua popularidade. Fica evidente, então, a visão do autor sobre a inconsistência dos relatos da Bíblia e a distorção explícita desta.
No primeiro parágrafo do livro já podemos tirar conclusões sobre o desfecho: Esta é a história Jesus e de seu irmão Cristo, de como nasceram, viveram e de como um deles morreu. A morte do outro não entra na história. E, de fato, não entra. Previsível? Sim. E, obviamente, intencional. Mais além, explicita-se a linha extrema, que, estou certo, ainda incomodará muita gente: há uma inversão de valores, dos conceitos de bem e mal; a passagem do jardim de Getsêmani é brilhante e expõe, como em Fronteiras do Universo, a fragilidade da fé, só que de um modo muito mais incisivo, ácido, sem atavios.
Pullman vai além. Após a leitura, fica clara sua visão quanto aos religiosos, e aqui cabe uma crítica. Me parece que, por um momento, ele se foca na figura dos religiosos, e não nas ideias desses religiosos, promovendo uma generalização, para dizer o mínimo, infantil. Há que se distinguir as pessoas, enquanto indivíduos, de seus pensamentos, ideologias e fé. Como aponta o professor e crítico literário Idelber Avelar, ideias foram feitas para serem confrontadas, debatidas e, caso necessário, refutadas, e não respeitadas. O respeito relaciona-se exclusivamente às pessoas, e Pullman parece, a meu ver, ignorar esse fato.
O bom jesus e o infame Cristo é muitíssimo bem escrito, simples e de fácil leitura, mas nem um pouco raso. Críticas à parte, sucita reflexões sobre diversos mitos que se criaram em torno do cristianismo e apresenta uma versão diferente, mas plausível de uma das histórias mais difundidas mundo afora, impregnada no imaginário ocidental. Procura combater o misticismo e humaniza as figuras de ambos os irmãos Jesus e Cristo -, que acabam, por fim e isso não é segredo -, sendo fundidas na mesma imagem, Jesus Cristo, o filho de deus.
Numa época em que se acentua o conflito entre antirreligiosidade e religão, fé e descrença, temos mais uma oportunidade de parar para refletir. Acredito que este livro pode intensificar o debate e, quem sabe, jogar uma luz em meio às trevas do misticismo e da irracionalização da fé.
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