MatheusPetris 13/01/2022
Memórias irônicas de um velho feliz
No entrecruzamento entre gêneros: a malandragem. Do autor e das personagens. Um misto entre romance de formação, autobiografia (ainda que falsa) e o romance folhetinesco. Atiçando, nos deixando sempre ávidos para compreender o amadurecimento de Tumache, Mon Gigolo, Mariano – como queiram chamá-lo –; descobrir novas memórias ou bebericarmos observando a estrutura rocambolesca, a alimentar uma risada faminta. Os literatos ditos marginais (de butique e bibê-lo, é claro) que me desculpem, mas estão anos-luz de Marcos Rey. Continuo preferindo o sabor de um suculento Rollmops.
O cuidado se estende também ao trato com o leitor. De uma proximidade butequeira. Não mede palavras, mas também não poupa mentiras. E o melhor: nunca saberemos quais eram, quais não. Se certas cenas soam inverossímeis, seria mais por um ceticismo de quem não quer se sujar no buteco escuro ali da esquina. De quem se preocupa com um cachorro que perdeu seu emprego para Mariano… O deboche é uma artimanha poderosa. Mariano escolheu seu caminho pelo bem da humanidade! Pois, "o trabalho brutaliza, destrói sentimentos, endurece os corações e impede o congraçamento universal."
O início, de recorte na infância do protagonista, é vital. Cresce e se estabelece em meio a malandros e sacanas. É de família, mesmo que não a conheça… Apesar de curto espaço na história, sua infância já antecipa seu caráter e ousadia e, claro, nos apresenta um pouco da força do autor.
Colocaria, ainda na parte introdutória do romance, a estadia de Mariano no Bordel de sua mãe adotiva, afinal, parte integrante de seus estudos acadêmicos na prostituição. Se o baralho de tia Antonieta é a sombra dos mistérios e fio-condutor da narração, sua entrada no mundo do sexo é a base de tudo. Contudo, a graça nunca se perde. Nesse primeiro momento, há certo pudor do romancista; deixando a parte sexual encoberta (ainda que descarada), não explicita. Para tanto, recorre a metáforas sinestésicas de doce ironia. A vulgaridade nunca é escrachada, mas também nunca é louvada.
Lançada as cartas, o Valete e a Dama introduzidos, o trio de malandros se entremeia na sociedade, seja alta, seja a do rés-do-chão. Quando a vida adulta – e com ela a gigolagem – se inicia, a estrutura do livro se torna cíclica. Mesmo diante de uma cronologia da vida daquelas personagens, as histórias vão se multiplicando, enquanto seus fins vão se repetindo ali e acolá. Isto é, tal como uma senóide, eles vão subindo e caindo. Ele, Esmeraldo, Lu… E nisso a santa Lu tem poder: escolhe sempre quem está no chão. O levanta. E assim troca de parceiro. Como não amar essa puta caridosa? Retomando a questão estrutural do enredo… A esperança nunca tem muito fôlego, logo Mariano “Estava diante de novo fracasso, nova queda e sem dinheiro no bolso.” E louco para ser salvo por Lu. Ela fora seu anjo e seu demônio.
Escrevi, certa vez, a seguinte afirmação sobre O Jogo da Vida, adaptação cinematográfica de Maurice Capovilla do conto Malagueta, Perus e Bacanaço, do verdadeiro imortal João Antônio: “Os “altos” e baixos dos malandros continuam mantendo eles submersos em seus próprios fracassos.”. A lógica é a mesma. Seja do filme, do conto ou deste romance.
Nos meandros finais, a nostalgia se torna presente… O passado distante é o acalanto, as memórias do que foi vivenciado se confundem com as próprias mentiras contadas. Foram um dia felizes? Com toda certeza… Mas, "É curioso como passam depressa os tempos felizes. Por exemplo, aquele mês que estivemos no Rio em gozo de férias me ficou apenas como um fotograma colorido." Uma imagem sempre a reluzir. É como se o passado, suas vitórias, fossem o lampejo de esperança, a possibilidade de um futuro melhor. Que, infelizmente, nunca chega. Por isso, só restará um simples cartaz dos tempos áureos. E eles não serão mais proferidos. Ficarão ocultos, ou melhor, aprisionados nas mentes daquelas personagens amarguradas.