spoiler visualizarBrujo 29/11/2022
A Rebelião dos Clones.
É incrível como havia uma grande quantidade de leitores de ficção científica aqui no Brasil nos anos 70 e 80. Havia por aqui a publicação de diversas coleções como a da série alemã Perry Rhodan, a Argonauta, a FC da editora Remus, a livros de bolso FC da editora Europa-America, entre outras. A quantidade de obras editadas por aqui era tão grande que a coleção Mundos da Ficção Científica da editora Francisco Alves se deu ao luxo de lançar este "A Rebelião dos Clones", de Evelyn Lief, uma autora completamente desconhecida e - pasmem! - apenas um ano após sua publicação original. E posso adiantar que essa decisão foi bastante acertada no que diz respeito à qualidade da obra.
Lançado originalmente no ano de 1980, o livro é ambientado em um futuro distante. Os humanos já dominam as técnicas da clonagem, as utilizando - obviamente! - sem a devida ética. Os clones são usados para, dentre outros, servirem de "banco de reposição de órgãos", transformando os mais ricos em seres semi-imortais. As viagens espaciais estão totalmente desenvolvidas, há o crescimento de diversas colônias pelo espaço, unificadas por Anselm Gabrol, O Pacificador, criando ConFederação, uma espécie de ONU intergaláctica, mas com poderes de criar e aprovar leis com base na votação entre seus membros. Aqui já merece uma atenção especial: a autora, em seu primeiro romance (e único, infelizmente!) mostrou que domina a criação de mundos muito bem, descrevendo alguns planetas de maneira relativamente breve, porém com profundidade.
No ano de 545 da Era Galática (sim, influência de Asimov!), o renomado cientista Dr. Paul Menard cria a técnica de acoplar cérebros de clones a grandes computadores, criando uma espécie de super-maquina, os chamados Komsols. Em pouco tempo, a poderosa organização chamada simplesmente de ComMed passa fabricar estes Komsols e exportar para todos os planetas da galáxia, sendo que, em pouco tempo, estes computadores biológicos passam a gerir a maioria deles. Por consequência, a ComMed se torna a organização mais influente e poderosa de toda a galáxia.
É neste contexto que se encontra a nossa principal protagonista, Selena Menard, uma terapeuta especializada em psicomotricidade e filha de Paul Menard. A parte da história narrada de seu ponto de vista faz parte uma espécie de biografia escrita por ela chamada " Da Progênie de Meu Pai: Uma História Pessoal da Guerra dos Clones". Selena é uma pessoa carregada de culpa, que herdou das ações do pai: ela se ressente dos tratamentos dispensados aos clones, escravizados e mutilados, e considera seu pai como um dos responsáveis.
Em determinado momento, através do intermédio do Dr. Marcus Kasur (ex-empregado da ConMed), passa a integrar a OHPDC (organização humana em prol dos direitos dos clones), ajudando na recuperação dos clones-Komsol resgatados, que estavam severamente atrofiados devido a forma como eram usados. Lá, ela passa a tratar de um clone chamado Sven Soronson, com quem acaba desenvolvendo uma relação de amor e ódio. Ele acaba tornando-se um dos principais líderes da organização, que passa a usar de métodos extremamente violentos em prol da causa do Clones. Para ele, os fins justificam os meios.
Vale também destacar a personagem Jeni, uma clonel-Komsol recém reabilitada por Selena e que se torna não só uma figura importante para a causa dos Clones como também divide o protagonismo da história com Selena, pois muitos capítulos são escritos sob sua ótica.
A obra é bastante rica na construção de personagens. Selena e Jeni são muito bem construídas, principalmente psicologicamente. A autora soube muito bem retratar toda a motivação destas mulheres, suas dores e suas conquistas. Ao fim da leitura eu me vi apegado à elas como poucas vezes aconteceu.
Falando em personagens, temos dois antagonistas na história: a ConMed e Sven Soronson que, basicamente, é o tipo de "vilão" que eu mais aprecio: aquele que tem vários tons de cinza, que comete atos atrozes achando estar agindo corretamente. Muitos, aliás, achariam justificados os atos de Sven, que pode muito bem ser classificado como um terrorista.
Em suma, vemos na história a grande batalha da OHPDC, principalmente de Selena e Jeni, contra a ConMed, conflito esse que se dá de forma armada e de forma política, com as duas protagonistas agindo inclusive no conselho dos planetas, em uma forma de luta pacífica. Os discursos proferidos pelos personagens na ConFed são arrebatadores e emocionantes!
Diferentemente da maioria das ficções científicas, esta aqui termina de forma otimista, tendo no final a redenção emocionante de Paul Menard, passando a atuar em seus últimos dias pelos direitos dos Clones; Jeni consegue recuperar Sven e trazê-lo à razão (a forma como isso acontece no livro é simplesmente comovente e BRILHANTE), o que acabou me impactando ainda mais devido ao trágico final do personagem.
No fim, os clones conseguem obter seus direitos, um planeta para viverem em paz e reduzir drasticamente o poder da ConMed.
Um aspecto muito interessante da obra é a aplicabilidade da mesma: podemos fazer um paralelo com diversas lutas de vários grupos no mundo real. Os mais evidentes para mim são os das mulheres, dos negros e dos judeus, mas dá para fazer a conexão com diversos outros.
É uma pena que Evelyn Lief apenas tenha publicado este livro pois, se em seu primeiro romance ela já foi capaz de escrever com tamanha profundidade, calculem onde sua obra poderia ter chegado com o passar do tempo! Ela facilmente poderia estar ao lado de escritoras importantes como Margaret Atwood, Octavia Butler e Ursula Le Guin. Mas, infelizmente, até encontrar informações sobre ela é difícil hoje em dia. A mais atual que encontrei é que a mesma acabou abandonando a carreira de escritora e atuando como psicanalista em NY. E nada mais...
Ao menos ela deixou este livro, que felizmente chegou aqui no Brasil. Se alguém topar com ele em algum sebo, pode comprar sem pensar duas vezes!