Valis

Valis Philip K. Dick




Resenhas - Valis


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Bruno 03/04/2014

É difícil falar de VALIS, ou mesmo explicá-lo para alguém. Vamos tentar, começando de uma história real: em meados de 1974, após Philip K. Dick ter extraído um dente do siso, pediu remédios para a dor. A entregadora, a moça da farmácia, usava um pequeno colar em formato de peixe. Ele perguntou seu significado, curioso, e ela explicou que era um símbolo usado pelos primeiros cristãos na época pouco após a morte de Cristo. Corte para um pouco depois, e Dick sentiu em sua cabeça a vinda de uma luz forte, rosa, e ao recobrar mais ou menos seus sentidos percebeu que o mundo estava, por um curto período de tempo, sobreposto com o cenário da Roma Antiga. E, mais do que isso, informações, ideias e (provavelmente) alucinações começaram a entrar em sua cabeça, o que deu início ao seu processo de colapso nervoso.

Philip K. Dick é “Horselover Fat”, que protagoniza essa história. Ele não esconde em nenhum momento que é ele mesmo narrando, em uma narrativa em primeira pessoa autobiográfica, a história do ocorrido e a sua racionalização filosófica-teológica de suas alucinações. Deste ponto em viante da sua vida — e, por tabela, também da de Horselover Fat — até a sua morte, o seu esforço intelectual mais proeminente foi uma tentativa de dar sentido às suas ilusões; passar para o papel, de alguma forma minimamente lógica, as experiências que teve em 1974. A partir daí, a sua escrita também ficaria bastante marcada pela sua experiência pessoal — esta dualidade entre a sua mente racional e o que só pode ter sido uma epifania religiosa — ou, como a denomina, a sua teofania.

VALIS (acronym of Vast Active Living Intelligence System from an American film): A perturbation in the reality field in which a spontaneous self-monitoring negentropic vortex is formed, tending progressively to subsume and incorporate its environment into arrangements of information. Characterized by quasi-consciousness, purpose, intelligence, growth, and an armillary coherence.

— Great Soviet Dictionary, Sixth Edition, 1992


VALIS é a sua teofania, ficcionalizada de maneira a não deixar muito claro onde começa e onde termina a ficção. Horselover Fat tem a experiência religiosa, e a partir daí narram-se as ideias, conclusões, e efeitos consequentes. Apresenta as ideias para os amigos. Discute teologia com seu círculo social como se fosse o resultado do jogo de futebol. E trabalha no seu diário, sua exegese (do grego, “interpretação de uma mensagem divina”), em que pensa, repensa, filosofa e constrói os sentidos necessários para dar palavras às revelações que lhe foram fornecidas pela luz rosa-plasmato-Deus Verdadeiro.

Como tal, o livro tem uma densidade incrível e forte teor filosófico. É uma leitura difícil, muitas vezes confusa ou até mesmo contraditória, mas segue a lógica do narrador-protagonista-autor durante a redação de sua exegese, as explicações mais racionais (ou não) para o que ele chama de suas revelações, e as tentativas de Horselover Fat em recobrar o resquício de saúde mental que perdera. Lidar com seus problemas psicológicos internos, como a constante necessidade de se sentir essencial, de “salvar” os demais. Com sua isolação, suas tentativas de suicídio, problemas matrimoniais, relação com o filho.

Daí pode-se presumir que não seja uma leitura recomendada para aquele que nunca leu algo do autor— ou, mais, que não tem interesse em conhecer um pouco do contexto pessoal do autor. Também não é algo que se pode ser enxergado simplesmente como um romance, apesar de suas características mistas. A parte filosófica não preenche toda a obra: temos personagens, temos arcos, temos um enredo. Vemos aqui temas presentes em suas antigas histórias, mais uma vez: a natureza fluida da realidade aqui se faz presente mais do que nunca. O que, afinal, é a realidade, senão uma questão de perspectiva? Quando VALIS está no jogo, distorcendo ou mesmo aniquilando quaisquer noções de tempo e espaço, é difícil argumentar.

The phenomenal world does not exist; it is a hypostasis of the information processed by the Mind. The Mind is not talking to us but by means of us. Its narrative passes through us and its sorrow infuses us irrationally. As Plato discerned, there is a streak of the irrational in the World Soul. (p. 37, da “Exegese” de Horselover Fat)

Não obstante, o enredo em si não é o que impulsiona o livro para a frente e, se formos ler com isso em mente, não largaremos o livro na vigésima página. Pode-se dizer que o enredo de fato engata apenas no capítulo 9 (de 14), quando os personagens vão assistir ao filme de ficção científica intitulado — adivinhem só — “VALIS”. Daí as coisas saem do campo de abstração filosófica para a ação em si. Evitarei falar a respeito para não estragar quaisquer surpresas para alguém que tenha o interesse eventual de ler o livro daqui a um tempo. Ou mesmo que o esteja lendo agora.

A despeito disso, a história se desenrola de maneira interessante. A princípio, seus personagens parecem de certa forma planos. Isso também é uma característica que é recorrente em grande parte das obras pregressas de Dick. Joe Chip ou Jason Taverner (Ubik e Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, respectivamente) não eram totalmente complexos ou únicos, mas apresentavam um conjunto de características que os tornavam diferenciáveis. Nada muito extensivamente construído, mas o bastante para a história fluir sem problemas. Apesar de Horselover Fat ser um personagem bastante característico, os outros em VALIS também o são na forma de arquétipos ou estereótipos, não como personagens muito tridimensionais. Kevin é o cínico, David é o cristão fanático, e o próprio Fat é o meio-maluco que acredita ter recebido revelações divinas. Mas isso parece tomar um certo segundo plano, pois a complementaridade de suas personalidades resulta em diálogos anedóticos que avançam as ideias e as histórias. Soa apropriado.

Um mergulho na cabeça do autor é parte da experiência deste livro, que não se contenta em ser apenas um romance — assim como também não o faz em ser uma autobiografia. Aqui, ficção e realidade se misturam e entremeiam de maneira a nunca termos certeza de se o que estamos lendo pode ter acontecido de fato, se o autor pensa que isso aconteceu de fato, ou é tão somente a ficção de Dick se misturando com as suas experiências reais. E assim adiciona outra característica que faz de VALIS um livro excepcionalmente esquisitro — a relação única entre o narrador-Dick e o protagonista-Fat (que em alguns momentos se entrelaçam ou sobrepõem). Dick admite que é Fat e vice-versa em diversos pontos do livro, mas isso não o impede de analisar o protagonista como se este fosse uma terceira pessoa de quem muitas vezes tem pena, com a qual compara as ideias, e cujo teor de revelação discute, apontando falhas e análises psicanalísticas.

A partir da projeção de sua teofania em um personagem, em uma terceira pessoa, ele é capaz de analisar a si mesmo, as suas ideias, as motivações por trás das interpretações que dá às alucinações, e de assim racionalizar a própria degradação mental.

I am not denying that Fat was totally whacked out. He began to decline when Gloria phoned him and he continued to decline forever and ever. (p. 34)

Insane people – psychologically defined, not legally defined – are not in touch with reality. Horselover Fat is insane; therefore he is not in touch with reality. The universe itself — and the Mind behind it — is insane. Therefore someone in touch with reality is, by definition, in touch with the insane: infused by the irrational. (p. 37)


Essa foi a minha segunda leitura (a primeira em dezembro de 2013). Sinto que consegui absorver mais das ideias, dessa vez — e, em resumo, é algo muito louco. Inexistência do tempo e do espaço, os conceitos fortemente (e assumidamente) influenciados pelo gnosticismo, realidade hologramática… é uma leitura densa. E para ser feita mais de uma vez.

Mas é fascinante.

site: http://adlectorem.wordpress.com/2014/04/03/valis/
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