jota 18/10/2020ÓTIMO (crônicas bem humoradas que provocam reflexões)As mais de setenta crônicas leves e divertidas – e algumas vezes até poéticas – de Meio Intelectual, Meio de Esquerda parecem formar um conjunto de textos um pouco mais saboroso do que Trinta e Poucos, volume publicado por Antonio Prata em 2016, que já era um bom livro, claro. E ficam no mesmo nível, penso, de Nu, de Botas, edição de 2013, que achei ótimo: foi meu primeiro contato com uma coletânea de seus textos, de quem sabia muito pouco, praticamente apenas que era filho do conhecido autor Mario Prata, ou pouco mais que isso.
Neste volume da Editora 34 (4ª. reimpressão, 2015), a apresentação é feita por Davi Arrigucci Jr. O crítico e escritor paulista destaca o poder de observação e síntese de Antonio Prata, capaz de registrar o vasto mundo “em toda a sua grandeza e miséria” a partir do bairro paulistano de Perdizes e entregá-lo para o leitor “com economia de meios, linguagem precisa e agudo senso de humor”. É exatamente isso que encontramos nessa leitura prazerosa: através do humor, da galhofa e também de certa melancolia, Prata nos ajuda a atravessar esses dias terríveis de pandemia e desgoverno.
Não me parece, como querem alguns, que o autor seja, por conta de suas crônicas, o novo Rubem Braga, já que cada um é único, não cópia ou imitação do outro. Pode, no máximo, ser seu, digamos, herdeiro intelectual, e desse modo Prata fica em muito boa companhia tendo Rubem como antecessor. Mas ele ainda tem muito tempo pela frente e pode ir um pouco mais longe com seu humor, que espero que um dia se torne tão irônico e mesmo ferino quanto o de nosso maior cronista de costumes até hoje, o genial Millôr Fernandes (1923-2012). Não que a ele se imponha a obrigação ou o desejo de que seja como Millôr, claro que não, mas torço para que suas qualidades o aproximem bastante do carioca do Méier.
Os textos de Prata nascem não apenas dele mesmo, também dos outros, como observou a Folha de São Paulo em 2010, ano do lançamento da primeira edição de Meio Intelectual, Meio de Esquerda: “O olhar atento escuta, cheira e sente os sentimentos e sensações escancaradas ou escondidas na cidade.” São Paulo está para Prata assim como o Rio de Janeiro – e por extensão o Brasil – estava para Millôr. Falando nele novamente, se é verdade que com o riso castigamos os (maus) costumes, como disse alguém há muitos séculos, fico imaginando o que Millôr diria, se estivesse vivo, sobre esse caso recentíssimo do deputado governista apanhado com dinheiro público desviado da saúde e escondido nas nádegas. Que certamente será mencionado por Prata em algum texto em breve.
Na falta, vai aqui uma citação de Millôr apropriadíssima para o momento que vivemos, para o figurino dos políticos terrivelmente patrióticos que temos, elaborada a partir da célebre frase do pensador inglês Samuel Johnson (1709-1784), que disse que “O patriotismo é o último refúgio do canalha.” À qual Millôr emendou: “No Brasil, é o primeiro.” Tem certos trechos do livro de Prata em que ele, se parece ter o espírito de Braga rondando sua cabeça quando escreve, também parece ter o de Millôr por perto a lhe inspirar. Não importa se seus textos foram publicados há uma década já. Nalgumas coisas (ou em muitas, depende) São Paulo e o Brasil continuam os mesmos...
Lido entre 14 e 17/10/2020.