spoiler visualizarLuchenriques 24/07/2014
Estive na Guerra
O livro-reportagem “O Gosto da Guerra” foi escrito pelo jornalista brasileiro José Hamilton Ribeiro, sete vezes vencedor do Prêmio ESSO, em 1969. A obra traz com riqueza de detalhes e apuração o relato de uma figura cada vez mais rara no jornalismo: o corresponde internacional. Em plena guerra do Vietnã, cercado por jovens combatentes americanos, Zé Hamilton brinda o leitor com um conjunto de histórias tristes, mas com um texto leve, agradável e revelador do horror de estar no front de batalha. Tudo isso sem, em momento algum, esquecer o seu papel de informar.
É interessante, durante a leitura, perceber como se origina a ideia de enviar um repórter para cobrir o conflito no Vietnã. De acordo com as lembranças descritas pelo autor, a Revista Realidade (na época a maior do País) já tinha em mente enviar um jornalista para zona de combate, ao invés de aderir às continuas reproduções de agências americanas e europeias, totalmente parcial e com o mesmo enfoque. Ao receber o convite da Embaixada Americana é que a aventura começa a tomar forma. O diretor da revista, Roberto Civita, anuncia a decisão e, pouco tempo depois, revela-se a escolha por José Hamilton, que não pensa duas vezes em aceitar.
Até hoje se discute como existem profissionais que desejam realizar este trabalho, mas uma certeza me veio em algo se torna óbvio durante o desenrolar da faculdade de jornalismo: quanto maior o risco, melhor a história. Quão perigoso foi o caminho percorrido por José Hamilton? Quantos desafios Caco Barcellos enfrentou para compor o “Rota 66” e denunciar os crimes da polícia que exterminou mais de cinco mil brasileiros de classe baixa? E quantas obras ricas em detalhes e boas histórias como essas existem? Poucas. Afinal, poucos estão dispostos a percorrer este caminho perigoso, e um número muito menor está apto para cobrir com tamanha dedicação, apuração e comprometimento. Mais complicado ainda é encontrar alguém disposto a bancar a brincadeira, cara e extensa demais para o imediatismo virtual de hoje.
Logo nos primeiros capítulos, Hamilton aborda uma questão de extrema importância, que costuma seresquecida ou substituída pelas descrições das rajadas de metralhadoras, minas terrestres e demais artefatos de destruição: o moral e a mente do soldado americano que está em guerra.
Como manter um jovem de 18 a 25 anos, no auge da testosterona e da disputa de macho alfa da aldeia, concentrado numa guerra? Pensando nisso, o repórter descreve o “Jogo dos 335 pedaços”, que consistia em 335 pequenos recortes de uma mulher nua de alguma Revista Playboy. O jogo corresponde à remontagem da figura recortada. Os 335 pedaços significavam uma peça para cada dia vivido no Vietnã (11 meses era o tempo mínimo de permanência, o que corresponde a aproximadamente 335 dias) que, aos poucos, completava o desenho. Outros soldados optavam por iniciar o jogo com 100 pedaços, quando esse era o número de dias para se voltar aos Estados Unidos.
Outra preocupação do exército americano tinha a ver com os combatentes negros, que representavam, aproximadamente, 15% de todo o front selecionado para ir ao Vietnã. Se em solo americano os negros eram vistos como “sujos” e “inferiores”, no Vietnã eles recebiam tratamento melhor do que os brancos, segundo o jornalista. Ou talvez lá, na Guerra, finalmente foram tratados em nível de igualdade.
Após as preocupações psicológicas relatadas no primeiro capítulo, temos o derradeiro “A Mina na Estrada sem Alegria”, trecho onde começa o horror do escritor, que já deveria ter retornado para Saigon, mas preferiu continuar na base americana mais avançada ao Vietnã do Norte, dominado por comunistas, em busca de uma foto com o colega japonês Keisaburo Shimamoto. Durante o percurso, o brasileiro pisaem uma mina terrestre e perde a perna esquerda. Em busca da imagem que seria utilizada na capa, Shimamoto fotografou o amigo José Hamilton, que estampa a capa desta edição.
Avaliando o trabalho de José Hamilton Ribeiro como repórter e apurador de notícias, já percebemos a sua dedicação e compromisso com a “sua verdade” desde a negativa à Embaixada Americana. Ao escolher viajar sem o patrocínio norte-americano podemos notar como é importante para o autor realizar a cobertura a partir da ótica brasileira, sem o interesse do Tio Sam pautando o seu trabalho. Desta forma, finalmente, tem-se uma fonte fora do eixo Estados Unidos-Europa.
A obra traz, ainda, inúmeras conversas e declarações de pessoas que conversaram com o jornalista durante sua estadia, tanto no campo de batalha e viagens de avião em busca de um novo hospital. Durante a leitura, observa-se um jornalista que sentiu o verdadeiro gosto da guerra, e descobriu como existem pessoas que gostam do embate. Mais do que isso, José Hamilton consegue transmitir o horror da guerra e fazer com que o leitor se sinta no Vietnã.