Bianca 20/01/2022
Incômodo e necessário
Carl Sagan publicou este livro um ano antes de morrer, e acredito que ele seja uma espécie de testamento de sua visão de mundo. Ele começa narrando passagens de sua infância
e contando como ele desenvolveu as duas características de pensamento que ele considera essenciais ao desenvolvimento humano: o ceticismo e a admiração. Ele avança o livro narrando inúmeras experiências pessoais e fatos históricos que confirmam a importância dessas duas "virtudes do pensamento", especialmente na sociedade moderna.
Boa parte da leitura conta com explanações sobre as bases da ciência, demonstrando que parte indispensável do seu sucesso reside em saber avaliar objetivamente a própria imperfeição e imprecisão. Isso a torna mais resistente à tentação humana de só buscar as evidências que confirmem os próprios desejos. Esse mecanismo a torna capaz de fornecer conhecimento com uma solidez inigualável, embora sua forma de pensar não necessariamente seja suficiente para alimentar todas as fomes humanas (especialmente as sociais, muito exploradas pelas pseudociências).
Carl Sagan esteve nos primórdios da divulgação científica. Sendo um renomado astrofísico, ele fundou o SETI, um projeto com objetivo de buscar por vida inteligente no espaço que esteve em atividade até 2020, e também teve contato com um grande volume de relatos de avistamento de objetos voadores não identificados (OVNIs) e até de sequestros por extraterrestres. Contudo, ele terminou a vida concluindo que não havia nenhuma evidência real de vida extraterrestre, e que os relatos em geral eram falsos. Ele identificou na raiz desse grande volume de falsos relatos causas que também originam crendices, superstições, pseudociências e afins, e que tornam muitas pessoas vulneráveis a charlatões e enganadores.
Ele se mostra bastante crítico às religiões em geral durante o livro, o que faz com que o livro possa ser bastante difícil pra quem tem qualquer tipo fé. A crítica está mais ligada aos excessos, principalmente ao uso da espiritualidade para fomentar alienação, algo que é visível e infelizmente frequente. Porém, penso que ele também acaba caindo em um certo reducionismo, colocando as histórias fantasiosas (incluindo aí fadas, demônios, aliens e outros), as terapias de hipnose, o esoterismo, as curas por médiuns, as experiências místicas e as visões de santos (dentre outros) todos juntos na conta da histeria, dos distúrbios do sono ou das alucinações mal compreendidas ou não amadurecidas. Ele prevê essa possível crítica e tenta estabelecer uma defesa de antemão no próprio livro. Porém, embora se possa reconhecer muitos acertos em sua leitura da realidade, em alguns momentos ela parece simples demais, colocando toda e qualquer experiência transcendente como fruto de algum tipo de problema psicológico.
Ao mesmo tempo, ele não deixa de falar que colocar ciência e espiritualidade como mutuamente exclusivas é um desserviço a ambas, e que as descobertas científicas em geral estão em perfeita harmonia com muitas religiões (ainda que não seja capaz de provar sua validade), à exceção das literalistas incapazes de comportar alegorias ou metáforas. Penso que o livro pode provocar mal-estares, porém, se encarados com honestidade, esses mal-estares acabam levando ao amadurecimento e a sofisticação do pensamento, tanto dos crentes quanto dos descrentes, e esse é seu grande mérito.
Por fim, Sagan também menciona a profunda ligação (até dependência) entre ciência e democracia - apontando ambas como imperfeitas, e, ao mesmo tempo, como as melhores formas de sistemas de conhecimento e governo que temos (ou as menos piores). Ele também fala sobre a importância do investimento em pesquisa básica e sobre a necessidade de formação ética e política dos cientistas, tendo em vista que o conhecimento científico também pode ser usado para a destruição.
A leitura que ele fez sobre o declínio educacional, sobre os prejuízos da falta de educação científica e os enganos no meio político é absurdamente acertada e envelheceu particularmente bem. É como se tivesse sido publicado hoje, e não há vinte anos. Ele tem uma visão quase (ironicamente) profética sobre o que vimos recentemente com Donald Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, dentre outros, encarnando os males que a "mistura inflamável de ignorância e poder" podem causar ao "tirar proveito dos frustrados, dos incautos e dos indefesos". A sua defesa do "kit de detecção de mentiras" para todas as pessoas, 20 anos atrás, é em parte o combate às fake news que as sociedades são obrigadas a implementar nos últimos anos. Lê-lo durante a pandemia de 2020/2021, na qual esse kit de detecção de mentiras fez tanta falta, foi muito impactante.