Di3gao 10/02/2024
Patrimônio latino
Muitos anos depois, diante da nostalgia, eu haverei de recordar aquele livro remoto que me marcou muito pelo universo mágico e mensagens profundas. Cem anos de Solidão é o livro em questão, uma obra grandiosa que transporta o leitor para a então aldeia fictícia de Macondo marcada por traços da realidade e o guia pela história solitária dos Buendias.
A trama acompanha uma estripe da família Buendia fadada a viver em um ciclo vicioso de desgraça e melancolia; na qual a linhagem avança e não só os nomes se repetem, mas também as mesmas ações são tomadas, as lutas diárias nunca mudam e o destino de cada um acaba sendo o mesmo: crescer e morrer na solidão.
Visto isso, percebe-se no decorrer do livro que ao longo de cada geração tem um membro que se afunda nas pesquisas irresolutas de Melquíades ou se isola do núcleo familiar, outro que é um bastardo com suas origens apagadas ou aquele que é consumido pela guerra. Esse ciclo é tão forte que Pilar Ternera não precisava mais ler cartas para prever o futuro da família, pois já conhecia as engrenagens familiares e a roda giratória que dá voltas por toda eternidade. Entretanto, a conclusão entregou um final muito belo e impactante quando Aureliano compreende a origem da família, resolve as pendências e quebra os antigos costumes, assim, permite os Buendias começarem uma nova estripe liberta desse ciclo vicioso.
O enredo foi construído encima de três pilares, três palavras que aparecem diversas vezes e carregam um forte significado no enredo: solidão, guerra e nostalgia.
A solidão que envolve todos os membros da família apresenta diversas facetas ao longo da história, por exemplo, Macondo era uma aldeia solitária tanto quando não tinha contato com o exterior quanto era nas épocas de guerra; o Coronel Aureliano se tornou solitário quando se isolou no seu desejo insaciável de fazer guerra; José Arcádio e Rebeca se tornaram solitários por terem sido excluídos da família ao serem mal compreendidos e Arcádio se tornou solitário de sua própria história por terem mentido sobre suas origens. Por sua vez, a guerra possui diferentes nomes, mas uma única faceta, sempre eram conflitos travados que trazem consequências drásticas a população, favorecem apenas as elites, tem seus valores distorcidos e nunca levam a resoluções ou mudanças drásticas que beneficiam as camadas populares. Já o terceiro pilar, o sentimento de nostalgia, assim como a solidão e a guerra, faz parte da vida dos Buendía e colabora para manutenção do ciclo vicioso, pois eles se agarram em uma falsa memória de um passado que era bom e prospera e tentam manter esses costumes pelas próximas gerações, mesmo o passado ter sido sofrido como o presente e serem essas tradições a causa dos problemas familiares enfrentados.
Além de ter várias camadas e mensagens que tocam o leitor, o livro também apresenta dois ângulos distintos que permitem analisar e compreender a obra, isto é, podemos a ver como um cosmo ou um microcosmo.
Diante disso, o núcleo da família Buendía pode ser vista como um cosmo onde cada personagem é um planeta que gira em torno de um único Sol que aquece e estabiliza esse cosmo, a matriarca Úrsula. Pode-se fazer essa comparação porque a estrutura familiar é complexa e bem estabelecida, cada personagem é muito distinto do outro e possuem suas próprias características, assim como planetas possuem formações diferentes, as relações familiares foram muito bem trabalhadas e a Úrsula está no centro de todo o enredo.
Em contrapartida, o ângulo que permite ver a obra como um microcosmo é obtido se colocarmos a aldeia de Macondo como o objeto de análise, pois ela cria um paralelo com a Colômbia e toda a América Latina, já que a história dos países latinos e a de Macondo compartilham origens sangrentas, violência, ditaduras e rebeliões, conflitos internos, a exploração estrangeira e de uma vontade para batalhar e uma esperança muito forte que um dia trarão um futuro melhor livre desses tormentos. Ademais, a história de Macondo foi um pano de fundo excelente para contar a trama principal e recebeu uma conclusão para o seu arco, já que acompanhamos desde a sua criação à modernização que ela teve até o seu final trágico e também solitário.
Nem só de uma trama incrível e bem construída se vive um livro, outro fator muito importante que contribui para torná-lo grandioso é a escrita dele. No caso de Cem Anos de Solidão o livro não só tem uma escrita excelente como foi ela que criou uma identidade à obra e a deixou imersiva. Gabriel Garcia Marquez é sem sombra de dúvidas um dos maiores contadores de história da literatura, pois a forma dele de narrar o livro como se estivesse na sua frente contando a vida dos Buendía faz parecer que são acontecimentos reais e foram vívidos pelo próprio Gabriel, além dele conseguir transpor em palavras uma cultura muito rica e criar personagens palpáveis. As críticas abordadas por meio dos paralelos entre Macondo e a América Latina foram muito ácidas e certeiras, ele revolucionou a literatura e trouxe fortes mensagens sobre os laços familiares, as linhagens, as tradições e a solidão.
Portanto, Cem Anos de Solidão é uma obra primorosa sem igual, tudo escrito nele é "irrepetivel desde sempre e para sempre, porque as estripes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra".